Em 2020, completaram-se 150 anos do fim de um dos episódios mais tristes, dramáticos e controversos da historiografia brasileira: a Guerra do Paraguai, também chamada de Guerra da Tríplice Aliança. O conflito foi responsável não só por mudanças na geopolítica de toda a América Latina, mas de profundas fissuras culturais e embates que perduram até os dias de hoje. Um exemplo é a acirrada disputa pelo canhão “El Cristiano”, localizado no Museu Histórico Nacional (RJ), envolvendo os governos brasileiro e paraguaio que perdura até os dias de hoje! Longe de entrar nas polêmicas infinitas relacionadas à Grande Guerra Latina, o objetivo deste pequeno ensaio é tentar trazer um breve panorama da cirurgia brasileira durante este emblemático período.
Avanços científicos e técnicos relacionados a guerras ocorrem desde a Antiguidade. Entretanto, durante o século XIX, a cirurgia evoluiu de forma nunca vista antes (não à toa este é chamado de “o Século dos Cirurgiões”), onde inovações cirúrgicas da vida civil foram úteis nos campos de batalha e vice e versa. Foi o que observamos nas Guerras Napoleônicas, na Guerra Civil Americana e na Guerra da Criméia, ocorridas antes durante e depois da Guerra do Paraguai respectivamente. É notório nos registros históricos do conflito latino, que a luta ocorreu não só entre nações, mas também entre a ciência moderna e o antigo empirismo.
Os avanços tecnológicos obviamente não se restringiram ao campo da medicina. Novos armamentos com maior capacidade letal também foram sendo desenvolvidos. Um em especial teve profundo impacto na cirurgia da Guerra do Paraguai. Os projéteis de arma de fogo, antes esféricos, tinham pouco alcance e precisão. Foram então introduzidos os projéteis cônicos, desenvolvidos pelo francês Henri-Gustave Delvigne e posteriormente aprimorado por Claude-Étiene Minié, com o qual estas balas ficaram associadas levando seu nome. Esta pequena mudança na aerodinâmica dos projéteis aumentou não só a sua precisão e alcance, mas principalmente sua capacidade letal e de destruição orgânica.
Esta mortal inovação transformou a cirurgia de guerra da segunda metade do século XIX. O número de baixas na Guerra do Paraguai ainda era predominantemente por doenças infecciosas, tal qual todos os conflitos anteriores a este. Entretanto a proporção de mortos e feridos por arma de fogo aumentou significantemente. A extração dos projéteis, considerada essencial naquela época, se tornava mais difícil com os projéteis minié, vistos que eles adotavam trajetos não retilíneos e mais profundos. Técnicas cirúrgicas como extração por contra incisão e o desenvolvimento de pinças mais sofisticadas (os chamados “extratores de balas”) para esta finalidade foram trazidas ao campo de batalha.
A invasão das províncias brasileiras de Mato Grosso e Rio Grande do Sul provocaram um imenso clamor popular e alistamento voluntário em massa em todo o país. Apesar de haver alguns oficiais médicos veteranos das Guerras Cisplatinas incorporados ao Exército Imperial, houve alistamento de grande contingente de cirurgiões civis e muitos acadêmicos de medicina, principalmente oriundos das províncias da Bahia e Rio de Janeiro, como o maranhense Manoel Gomes Belfort Duarte, que cursava o segundo ano de medicina e foi colocado no posto de 1º Cirurgião do Corpo de Saúde do Exército. A escola cirúrgica militar era predominantemente baseada na literatura europeia. A maior parte dos cirurgiões imperiais utilizava como referência o “Memoirs of Military Surgery, and Campaigns of The French Armies” escrito pelo Cirurgião-Chefe das tropas Napoleônicas, Dominique-Jean Larrey. Entretanto, alguns poucos cirurgiões brasileiros tiveram acesso às experiências norte-americanas em cirurgia militar após a recente Guerra de Secessão, como o “A Manual of Military Surgery” de Samuel D. Gross.
Um dos grandes adventos trazido para os hospitais de campanha (também chamados de “hospitais de sangue”) foi a anestesia. Na grande maioria das vezes era utilizado o clorofórmio, que tinha como vantagem ser menos tóxico e menos inflamável que o éter. Este último aspecto era extremamente válido, principalmente quando as cirurgias eram realizadas nas barracas de campanha iluminadas apenas com velas ou lamparinas. Infelizmente, nem sempre havia clorofórmio suficiente ou que pudesse ser levado para próximo das linhas de frente, e muitas das cirurgias ainda eram realizadas “a sangue frio” ou com ingestão de aguardente.
Em relação aos procedimentos cirúrgicos, a maioria ainda consistia em amputações de membros. Porém com o advento de novas técnicas, como o uso de anestesia e instrumentais mais sofisticados, as cirurgias passaram a ser mais regradas e com resultados mais positivos. Um exemplo foi a amputação de membro inferior. Antes se utilizava uma faca circular que possibilitava realizar uma única incisão contemplando desde a pele até o periósteo (método de Dupuytren). A partir de então serrava-se o fêmur e se fazia uma sutura com plano único. Apesar de mais rápida, esta técnica apresentava pior resultado funcional, diferente da nova técnica onde se utilizava a faca reta que possibilitava a secção tecidual por planos e um fechamento do coto em “V”, bem parecida com a técnica de fechamento utilizada atualmente.
Técnicas de amputação de membros superiores, principalmente as mais proximais, eram consideradas de extrema complexidade especialmente pela necessidade de controle vascular oriundo dos vasos subclávios. Porém existem muitos relatos de amputações ao nível da articulação escapulo-umeral bem sucedidas como no caso do soldado Júlio José das Chagas, operado pelo médico baiano Álvaro Moreira de Sampaio que ficou bastante famoso por realizar uma amputação bilateral dos membros superiores junto ao tórax.
A cirurgia em cavidades ainda era proibitiva, sendo os relatos de procedimentos cirúrgicos abdominais extremamente excepcionais. Um destes casos é esta incrível passagem contada pelo cabo Dionísio Cerqueira em suas Reminiscências da Guerra do Paraguai:
“… não pensem ser fantasia; não, não é, estava uma vez de dia – e foi chamado um cirurgião para socorrer a um ferido recolhido do hospital. Acercou-se do infeliz, que tinha o ventre aberto e os intestinos de fora, palpitantes. Deixou o cigarro, cheio de sarro, na barra ensanguentada; e, sem lavar as mãos, tentou debalde reduzir a hérnia, rebelde e obstinada. Desanimado, abriu uma caixa de amputação, tirou uma faca fina, longa, meio enferrujada; agarrou com a mão esquerda o intestino mais saliente; com uma faca ameaçadora na direita olhou para o cabo-enfermeiro, que fitava, espantado, aquela cena e perguntou-lhe: Corto?
O cabo respondeu: Não senhor doutor.
Então arranja-te– disse o cirurgião, e retirou-se.
O enfermeiro, mais prático do que ele, introduziu os intestinos e coseu o ventre do infeliz.
Parece fábula, mas é verdade, em toda a sua nudez.”
Muitas conclusões poderíamos tirar deste insólito relato, mas para apenas ficarmos em uma, nota-se a observação de Dionísio de que o cirurgião não lavara as mãos, mostrando que já naquela época havia uma preocupação em relação à limpeza no ato operatório. Infelizmente, o conhecimento de antissepsia difundido por Joseph Lister não consta em nenhum dos registros de cirurgia da época, visto que seu emblemático artigo só foi publicado na revista Lancet em setembro de 1967, ou seja, durante o conflito.
Como dito anteriormente, a principal causa de baixas ainda eram as infecções. A chamada “gangrena nosocomial” ou “gangrena traumática” ocorria na maior parte dos procedimentos cirúrgicos. A maior parte dos cirurgiões ainda acreditava que para uma boa cicatrização era necessária a presença de pus na ferida. O terreno alagadiço e o frio da região dos conflitos, aliados ao fato de que uma minoria dos soldados possuía calçados adequados, eram propícios a um outro tipo bem comum de gangrena, a chamada “gangrena por congelação”. José Monteiro Caminhoá, 1º Cirurgião do corpo de saúde da Marinha observou que a maioria dos soldados que sofria de “gangrena por congelação” eram provenientes das províncias do Norte e Nordeste do Brasil. Outra grande causa de mortandade em soldados e civis eram as epidemias. Vários surtos de cólera e varíola ocorreram durante os anos de conflito, assim como doenças endêmicas como malária, febre amarela e tifo.
Uma outra “praga” que assolou os esforços de guerra naquela época e ainda persiste atualmente é a corrupção no sistema de saúde. O Diário do Rio de Janeiro em matéria publicada em 7 de Janeiro de 1866 denunciou um escândalo de superfaturamento que envolvia um certo farmacêutico de nome Baena Farinha. Segundo a reportagem, Farinha fazia parte de um esquema no qual enviava “ambulâncias” (como eram chamadas as grandes caixas contendo medicamentos e material cirúrgico que iam para o teatro de operações) com menos insumos que os comprados. Faziam parte da falcatrua vários oficiais médicos do Exército, dentre eles o 1º Cirurgião Luiz Bandeira de Gouveia. As evidências apontam que ele foi o responsável por Farinha vencer de forma fraudulenta a licitação para compra de medicamentos. Qualquer semelhança com os dias atuais certamente não é mera coincidência.
Um outro registro importante nesta guerra foi a presença, ainda que incipiente, de enfermeiras no campo de batalha. Ainda que não houvesse um corpo de enfermagem estruturado, como o de Florence Nightingale na anterior Guerra da Criméia, muitas mulheres prestaram serviços de saúde aos soldados no front. Naquela época era permitido a presença de mulheres (chamadas de “vivandeiras”) e até mesmo crianças acompanhando a tropa. A maioria era de familiares dos soldados, mas muitas mulheres viajavam com o corpo expedicionário prestando serviços seja por motivos financeiros (como cozinha, costura de fardas e até prostituição) ou voluntariamente por motivos humanitários. Um caso emblemático foi o de Ana Néri.
Ana (mais precisamente Anna Justina Ferreira Nery) era uma mulher de origem abastada, casada com o Capitão-de-fragata Isidoro Antônio Nery. Dois de seus três filhos, além de seu irmão eram oficiais do exército quando a guerra irrompeu. Ana solicitou ao presidente da província da Bahia permissão para ir à Guerra no intuito de encontrar seus entes em troca de servir como enfermeira do corpo expedicionário. Atuou em vários hospitais militares no sul do Brasil, Argentina e Paraguai. Por seus feitos, é considerada a matriarca da Enfermagem no Brasil.
Muitos estudiosos creditam à Guerra do Paraguai vários acontecimentos marcantes da nossa história, como a queda da Monarquia e a criação do Exército Brasileiro. Muitas ruas e monumentos levam o nome de batalhas (Humaitá, Riachuelo, Tuiuti…) ou personalidades do conflito (Duque de Caxias, General Osório, Marcílio Dias…). Entretanto poucos são os registros e informações confiáveis, desprovidas de ufanismo ou depreciação ideológica, que podemos utilizar para uma compreensão honesta sobre o tema. Mais importante que o infindável debate sobre os verdadeiros culpados pelo sangrento conflito, é manter viva a memória dos brasileiros que pela primeira vez em nossa história, vieram das mais longínquas províncias e se reuniram em um só lugar por um mesmo objetivo. E não esqueçamos também dos médicos que nas condições mais inóspitas e ainda no alvorecer da ciência moderna fizeram o possível para cuidar de nossos doentes e feridos.
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Referências:
Silva, Carlos Leonardo Bahiense da. Doutores e Canhões: o corpo de saúde do Exército Brasileiro na Guerra do Paraguai (1864-1870). 2012. 359f. Tese (Doutorado em História das Ciências e da Saúde) – Fundação Oswaldo Cruz/Casa de Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro-RJ.
Souza, Luiz de Castro. A Medicina na Guerra do Paraguai. Mato Grosso: (sem editora), 1972.
Cerqueira, Dionisio. Reminiscências da Guerra do Paraguai. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército Editora, 1960 (Edição Especial).
Doratioto, Francisco. Maldita Guerra. São Paulo: Companhia das Letras, 2017 (2ª Edição).
Félix Júnior, Osvaldo Silva. A Medicina da Bahia na Guerra do Paraguai. História & Perspectivas, Uberlândia (41): 299-333, 2009.
Gross, Samuel David. A Manual of Military Surgery. Richmond – VA (Estados Confederados dos Estados Unidos), 1863: (Reimpressão pela Forgoten Books – 2012).