A contribuição que veio da Polônia para a Medicina popular brasileira

Por Rodrigo Felippe Ramos, TCBC-RJ

No Brasil do século XIX, o acesso à saúde, principalmente nas regiões não litorâneas, era extremamente difícil. Ademais, diversas doenças ainda pouco conhecidas à luz da ciência não tinham ainda tratamento específico. Até mesmo aqueles que praticavam a arte de curar sem serem médicos titulados, como barbeiros, curandeiros, rezadeiras etc., nem sempre se encontravam disponíveis na maior parte do território nacional. Sendo assim, a incumbência de tratar dos doentes recaía naqueles que tinham um mínimo de conhecimento intelectual, como donos de fazendas, boticários ou, até mesmo, alguém simplesmente alfabetizado. O auxílio nas horas de enfermidade em geral estava na prateleira de suas casas: manuais e/ou dicionários de Medicina, sendo o mais popular o escrito pelo Dr. Chernoviz.

Piotr Czerniewicz (que teve seu nome “abrasileirado” para Pedro Napoleão Chernoviz) nasceu na Polônia, em 1812, e iniciou seus estudos em Medicina na Universidade de Varsóvia. Tomou parte do chamado Levante de Novembro, uma revolução polonesa contra a influência russa, e, uma vez que a revolta não se logrou, exilou-se na França em 1830. No exílio, completou seus estudos na Universidade de Montpellier, e alguns anos depois, em 1840, desembarcou no Rio de Janeiro em busca de reconhecimento profissional e financeiro.

 

Na capital da Corte brasileira, teve seu diploma reconhecido e ingressou na prestigiosa Academia Imperial de Medicina. Rapidamente Chernoviz passou a ter contato com a chamada medicina popular, bem diferente daquela que aprendeu na Europa, mas que a maior parte dos brasileiros se valia. Uma consulta médica variava, em média, de 5 a 10 mil réis, o que certamente um brasileiro comum da época não podia arcar. Outra população que certamente não tinha acesso à medicina tradicional eram os escravos, visto que nenhum senhor estava disposto a pagar uma quantia elevada (às vezes quase o preço de um escravo) pela saúde dos seus cativos. Chernoviz viu então uma oportunidade no mercado editorial.

Manuais de medicina popular já existiam no Brasil desde o século XVII, com exemplos mais famosos: Tratado único das bexigas e sarampo, do médico Romão Mosia Reinhipo (1683), Erário mineral, de Luís Gomes Ferreira (1735) e o Manual do fazendeiro ou tratado doméstico sobre a enfermidade dos negros, escrito por Jean-Baptiste Alban Imbert (1835). 

Chernoviz publicou a primeira edição do Formulário ou guia médico em 1841. No ano seguinte, publicou o Dicionário de Medicina Popular, maior e mais voltado para a população leiga, contendo três volumes. A publicação das obras ficou a cargo da famosa loja de livros da rua da Quitanda, na capital da Corte. A confiança dos editores no sucesso dos livros foi tamanha que a primeira tiragem foi de três mil exemplares do Dicionário, algo sem precedentes, mesmo sendo um livro caro (em torno de 9.000 réis) para os padrões da época.

Tanto o Formulário quanto o Dicionário apresentavam descrições das moléstias em que deviam ser empregados; as plantas medicinais indígenas, e as águas minerais do Brasil; a arte de formular, a escolha das melhores fórmulas, e até mesmo receitas úteis nas artes e na economia doméstica, como perfumes e tintas de escrever. Abaixo, um trecho que, embora possa parecer inusitado nos dias de hoje, era como algumas doenças comuns eram tratadas:

 

“ANGINA NO PEITO – ANGINA NERVOSA, STRENALGIA, CATANHO

SUFFOCANTE. APERTO DOLOROSO DO PEITO QUE VEM POR ACESSOS –

ADMINISTRAR 10 A 15 GOTTAS DE ETHER SULFURICO EM MEIA XÍCARA

D’ÁGUA FRIA COM ASSUCAR, CHÁ DE FOLHAS DE LARANJEIRA OU DE HERVA

CIDREIRA. DAR A RESPIRAR ETHER, VINAGRE, CHLORIFORMIO. APPLICAR

SINAPISMOS NAS PERNAS E UM CATAPLASMA DE LINHAÇA MUITO QUENTE NAS

COSTAS; DAR UM CLYSTER D’ÁGUA MORNA COM 20 GOTTAS DE LAUDANO.

BANHO MORNO GERAL. CAUSTICO NO PEITO. CAFÉ. FUMIGAÇÕES COM

INFUSÃO DE ESTRAMONIO, MEIMENDRO, BELLADONA. PARA PREVENIR AS

CRISES COSTUMÃO EMPREGAR OS MEDICAMENTOS TÔNICOS 632. QUINA,

PREPARAÇÕES DE FERRO, BANHOS DE MAR. PURGANTES 629”

 

As receitas do Dr. Chernoviz em geral seguiam um padrão de formulação com os seguintes componentes: a base, isto é, o agente principal do medicamento que conteria o princípio ativo; o adjuvante, que serviria para aumentar as propriedades ou virtudes da base; o corretivo, cuja finalidade era enfraquecer o sabor ou o cheiro, podendo também reduzir a atividade ou ação corrosiva; o excipiente, substância que serviria de veículo às outras três, por fim; o intermédio, que servia para tornar o medicamento miscível em água ou outro excipiente. Assim, por exemplo, na Mistura Balsâmica de Fuller:

Copaíba – 2 onças

Gemas de ovo – n.2

Xarope de bálsamo de Tolu – 2 onças

Vinho Branco – 6 onças

A copaíba seria a base, o xarope, o corretivo, as gemas de ovo, o intermediário, e o vinho branco, o excipiente.

Os livros de Chernoviz, em especial o Dicionário, ficaram tão famosos que encontramos menção a eles em várias obras da nossa cultura e literatura. O coronel João Batista Pinheiro, personagem oitocentista de “Sinhazinha”, de Afrânio Peixoto, ilustra bem a iniciação de um fazendeiro nos meandros da medicina. Quando ganha de presente um Chernoviz, faz dele o fiel companheiro, que definitivamente o protege contra a ignorância. “Olhe, eu com isso e uma botica, não tenho medo da academia toda. Tenho tino, e isto [o manual] me dá o que falta… O seu Chernoviz, meu amigo, não falha, aquilo vale por uma academia.

Monteiro Lobato, em “O engraçado arrependido”, mostra um personagem que utiliza o Chernoviz como um passaporte para um emprego garantido, que lhe resolveria a vida. Pontes, aguardando o desfecho letal do aneurisma de seu rival, “leu, no Chernoviz, o capítulo dos aneurismas, decorou-o… Chegou a entender da matéria mais que Dr. Lodureto, médico da terra”. Em outras obras de autores de renome da literatura nacional, como Cora Coralina, Machado de Assis, Visconde de Taunay e Raymundo Magalhães, também vemos menções a Chernoviz. Na obra “Sinhazinha” do famoso autor e higienista Afrânio Peixoto, já citada anteriormente, o personagem Luciano assegura que havia “mais Chernoviz no Brasil do que Bíblia”, tamanha era sua popularidade no fim do século XIX e início do século XX.

Em 1855, Chernoviz retornou à França, terra de sua esposa Jules Bernard, junto também de seus seis filhos. De lá continuou a publicar novas edições de seus manuais, sempre na língua portuguesa. Faleceu em 1881, aos 60 anos de idade, mas edições de seus livros continuaram a ser publicadas, sempre acompanhando os avanços científicos da época. A décima sexta edição do Formulário ou guia médico, datada de 1897, já continha “os novos métodos de soroterapia segundo as teorias de Pasteur e de Roux”, e informações sobre “os raios X ou as fotografias através dos corpos opacos”. 

Embora estrangeiro, Chernoviz certamente ficou marcado não só na medicina brasileira, mas na nossa cultura. Durante a segunda metade do século XIX e início do século XX, mais pessoas foram tratadas através da orientação dos seus livros por leigos do que por médicos de fato, tornando a sua contribuição imensurável.

 

Fontes:

EDLER, F. C.; GUIMARÃES, M. R. C. Chernoviz e a medicina no Império. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, p. 128-146, out./nov./ dez., 2003.

FIGUEIREDO, B. G. Os manuais de medicina e a circulação do saber… Educar, Curitiba, n. 25, p. 59-73, 2005. 

GUIMARÃES M. R. C. Chernoviz e os manuais de medicina popular no Império. Hist. cienc. saúde, Manguinhos, v. 12, n. 2, ago. 2005.

GUIMARÃES M. R. C. Os manuais de medicina popular de Chernoviz na sociedade imperial. Cantareira, Niterói, n. 5, v. 1, ano 2, 2004.