A fístula do rei e o reconhecimento da Cirurgia

A monarquia francesa vivia seu apogeu em meados do século XVII. A França se consolidou como a maior do planeta, principalmente por vitórias em conflitos com outras potências, como a Guerra Franco-Holandesa, a Guerra dos Nove Anos e a Guerra da Sucessão Espanhola. Mas o maior símbolo do poder francês era o seu rei, Luís XIV, também chamado de “Rei Sol”. Luís XIV consolidou o sistema do Absolutismo, que acreditava na linhagem divina da monarquia e centralização do poder. Uma das maiores demonstrações de poder dessa época foi a construção do palácio de Versalhes.

Apesar de tudo estar indo bem em seu reinado, e com seu poder cada vez aumentando mais, uma doença incômoda e inconveniente começou a acometer o Rei Luís XIV, que tinha à época a idade de 48 anos. Luís notou uma pequena tumoração próxima ao ânus, inicialmente indolor, mas que, com o tempo, começou a paulatinamente apresentar vermelhidão e dor. A lesão passou a impedir o monarca de andar a cavalo, obrigando-o a se locomover sentado em uma poltrona carregada por lacaios, o que passou a chamar a atenção da corte e demais súditos. Para diminuir o constrangimento do rei, foi divulgado que ele tinha um “tumor na coxa”. O rei padeceu dessa afecção por cerca de 10 anos.

Os médicos mais proeminentes da corte foram chamados para cuidar do rei, com aplicação de emplastros, enemas e tudo que a parca medicina podia oferecer à época, sem sucesso. Mesmo com os avanços da medicina Renascentista, algumas doenças não eram familiares aos médicos da época. Os abscessos e outras afecções anais eram comumente tratadas por cirurgiões-barbeiros, tidos como figuras inferiores, visto que a Cirurgia não era um ofício considerado pertencente ao campo da Medicina. Nessa época os médicos e cirurgiões se encontravam em um embate ferrenho no campo político para que estes últimos fossem reconhecidos oficialmente como médicos.

Com a piora de seu quadro, Luís XIV mandou chamar um cirurgião que havia feito fama tratando da plebe, chamado Charles-François Félix de Tassy. Essa atitude foi considerada um escândalo entre os médicos da corte, acirrando ainda mais os ânimos com os cirurgiões. Mas ninguém ousava contrariar o rei, e Félix foi examinar o monarca. Constatando realmente ser uma fístula, Félix resolveu testar uma técnica inovadora. Ele havia observado que a simples drenagem do abscesso perianal não bastava, pois sua recidiva era quase certa. Ele pensou que para a cura definitiva era necessária a exérese de todo o trajeto fistuloso e, para tal, desenvolveu uma espécie de estilete (Figura).

Instrumentos utilizados na cirurgia do Rei Luís XIV.

Félix então “testou” sua técnica em vários pacientes, pessoas pobres, mendigos e internos de instituições de saúde, antes de realizar o procedimento no rei, levando várias pessoas a óbito. Quando se sentiu seguro, realizou o procedimento no rei com seu novo instrumento e tratou a ferida no pós-operatório com curativos embebidos com vinho Borgonha. A cirurgia foi um sucesso, o que deixou Luís XIV bastante grato. Ele recompensou Félix com 300 mil libras (equivalente a R$ 166 milhões atualmente), uma propriedade rural em Moulineaux (na região da Normandia, no norte da França) e um título de nobreza. Mais que isso: Luís XIV ajudou a elevar o status dos cirurgiões ao mesmo que o dos médicos, proibindo apenas “os cirurgiões-barbeiros que somente cortam cabelos” de exercer a Cirurgia. Anos mais tarde foi criada a Academia Real de Cirurgia, onde, aliás, existe um retrato de Claude-François Félix de Tassy com a inscrição “O primeiro cirurgião de Luís XIV”.

O Rei Luís XIV teve um dos reinados mais longos da Europa, ocupando o trono por 72 anos. Embora marcada por insucessos e desfechos trágicos, a Cirurgia da “era pré-anestesia e assepsia” possui alguns casos de resultado satisfatório, como o do monarca francês. Esse feito só foi possível graças à coragem de Félix de Tassy, mas sobretudo à coragem do rei ao se submeter a tal procedimento e aos inúmeros infelizes que serviram de “cobaias” do cirurgião francês.