A hérnia inguinal e Bassini

Na arte da medicina, os cirurgiões devem agir como músicos que tocam diversos instrumentos permanentemente afinados.
Novatos presenciam cenas cujo real significado pode demora a ser entendido.
Passei por isso algumas vezes. Uma foi como auxiliar na correção de hérnia inguinal – aquelas que ocorrem na virilha -, realizada por um famoso professor de cirurgia. Ele havia convidado um outro catedrático, argentino, para assistir sua inovadora técnica. Ao final do procedimento o portenho, seu amigo de longa data, disse: “mas … essa é a técnica de Bassini”.

 

Foi como se a orquestra tivesse desafinado, e o que veio em seguida foi um silêncio ensurdecedor. O quê havia sido tocado? Uma composição escrita em 1884 ou em 1974?

Edoardo Bassini (1844 -1924) descreveu sua técnica em seis artigos publicados em italiano e em alemão. Com a enorme casuística de 262 cirurgias, demonstrou que ao suturar os tecidos enfraquecidos, respeitando rigorosamente a anatomia da região afetada, conseguia um excelente resultado. Com uma taxa de infecção menor que 5%, seu trabalho foi reconhecido na Europa como um grande feito.

William Halsted (1852-1922), famoso cirurgião norte-americano, publicou em 1893, a experiência em 82 pacientes da Universidade Johns Hopkins na “cura radical da hérnia inguinal em homens”, afirmando que “há mais de três anos eu descrevi uma nova operação”. Não deve ter lido, como meu professor, os artigos de Bassini. Halsted havia publicado “sua” técnica na mais importante revista de cirurgia da época.

Bassini formou-se em medicina em Pádua, com 22 anos. Na guerra prussiano-austríaca, optou lutar como soldado de infantaria. Ficou prisioneiro por longo período, após ter sido ferido por um golpe de baioneta na virilha, causando uma perfuração intestinal, que demorou 5 meses para fechar.

Após a guerra prosseguiu com sua formação médica, trabalhando com o fenomenal cirurgião Theodor Billroth, em Viena. Foi para Berlim aprender cirurgia plástica e criar instrumentos cirúrgicos, e posteriormente para Munique e Berlim. Em Londres aprendeu as técnicas da cirurgia asséptica com Joseph Lister.

Em 1882 tornou-se chefe de cirurgia da Universidade de Pádua, nunca tendo comentado a conexão entre seu trabalho sobre a cirurgia das hérnias e a ferida de baioneta. Entretanto, a ferida e a inspiração mantêm-se próximas.
Essa história, como outras, ensina sobre o risco das soluções importadas ou “plug-and-play”, como alertou a psicóloga Ziva Kunda: “as pessoas valorizam as informações que julgam importante para justificar a conclusão desejada”; ou como a historiadora Margaret MacMillan aconselhou, ao usar a história, sempre tratá-la “com muito cuidado”.

As barreiras das línguas e do fluxo de informações tentam impor como “modelo” a medicina norte-americana, que é mais custosa e menos acessível, quando comparada a praticada em diversos países da Europa.

A todo momento somos surpreendidos por novos “arranjos” que modificam o “clássico”, por isso não devemos nos afastar das “partituras”, que ajudam a medicina ser uma arte.

TCBC Alfredo Guarischi –

Artigo publicado no jornal O Globo on line de 11/06