Artigo: Não haverá recall

Mais de 4 mil crianças com leucemia são tratadas, no SUS, com remédio chinês que não funciona

Temas ligados à saúde frequentemente são manchetes, algumas boas e outras ruins. Semana passada um grande e respeitado laboratório farmacêutico multinacional emitiu um recall mundial para um dos seus produtos mais vendidos para tratar hipertensão arterial, a valsartana, ao serem detectados lotes do medicamento contaminados com N-nitrosodimetilamina, que pode causar câncer.

A Agência Européia de Medicamentos descobriu que 2.300 lotes de valsartana, fabricados na China e distribuídos na Alemanha, Suécia, França, Canadá, entre 18 outros países europeus, sofreram essa contaminação, possivelmente de forma involuntária, decorrente de mudança do seu processo industrial.

Esse fato é preocupante e mostra a seriedade de entidades vigilantes, bastante diferente ao absurdo que vem ocorrendo no Brasil. Contrariando a recomendação da Organização Mundial da Saúde de garantir a qualidade dos medicamentos, o MS vem importando e distribuindo, desde 2017, para crianças portadoras de leucemia linfocítica aguda (LLA), uma asparaginase chinesa, mais barata, que simplesmente não foi estudada nessa patologia pediátrica, em substituição ao produto usado aqui e em todo o Primeiro Mundo, por anos, com sucesso.

A asparaginase é um medicamento fundamental no tratamento da LLA, e por isso oncologistas pediatras brasileiros, com a ajuda da comunidade científica internacional, realizaram, em três diferentes laboratórios, estudos que detectaram grande quantidade de proteínas estranhas nessa asparaginase, o que compromete a qualidade do medicamento. Posteriormente, testes comprovaram baixa concentração do produto chinês e elevados níveis de anticorpos antiasparaginase nos animais de experimentação. Finalmente o MS é proibido pelo Ministério Público Federal de importar esse produto, mas “lava as mãos” e transfere sua responsabilidade pela importação do produto de qualidade comprovada para os subfinanciados hospitais credenciados com o SUS. Diante das reclamações dos hospitais e pacientes, alega que a falta do medicamento é porque o MS está proibido de continuar sua importação. É uma completa inversão dos fatos.

O equívoco do MS tem agora mais um novo capítulo, com a divulgação do estudo do Hospital de Clínicas de Porto Alegre, que analisou o resultado do tratamento de 20 crianças. Foi detectada a atividade do medicamento em apenas 2% das que receberam a droga chinesa, ao passo que, com o uso da asparaginase comprovadamente eficiente, essa percentagem chega a 75%.

É extremamente preocupante a postura do MS de decidir pela lei do menor preço e ignorar a necessidade da comprovação da eficácia e segurança de produtos farmacêuticos, entre outros. Como ouvi de uma pesquisadora, “Quem utiliza uma droga sem testes clínicos comete um enorme equívoco e será julgado pela História, a qual já está sendo tristemente protagonizada por mais de 4 mil vítimas dessa asparaginase chinesa”.

Para esses pequeninos pacientes não haverá recall.

TCBC Alfredo Guarisch

Artigo publicado no jornal O Globo no dia 10/07/2018.