Hidratação, uma volta ao passado

O avanço da qualidade das agulhas permitiu o uso das infusões venosas de forma mais rápida, e isso foi consagrado durante a Segunda Guerra Mundial

Era um paciente com olhos encolhidos e pele seca. Nada conseguia ingerir. Estava sem forças. As veias do braço eram finas e se rompiam com facilidade. As pernas inchadas impediam o acesso a algum vaso.

Colocar um cateter numa veia do pescoço ou no peito naquele paciente seria arriscado. A melhor opção era aplicar o soro no tecido subcutâneo abdominal, na fina camada de gordura que lhe restava. Ele precisava de ubconforto e aceitou a opção.

Os jovens médicos que acompanhavam o experiente professor naquela visita residencial se entreolharam. Na faculdade não lhes ensinaram a respeito dessa técnica, pois, entre outras matérias, deixaram de ensinar História da Medicina.

A saga dos métodos de administração de líquidos e medicamentos por via parenteral foi desenvolvida ao longo de séculos por pioneiros que, entre tentativas e erros, enfrentaram preconceitos. 

Foi o médico inglês William Harvey, em seu livro “Estudo anatômico do movimento do coração e do sangue os Animais”, (em tradução livre do latim), de 1628, deu a primeira explicação precisa sobre a circulação sanguínea. Apesar disso o desenvolvimento do acesso aos vasos e dos fluidos para infusão parenteral só ocorreu na Europa durante a epidemia de cólera de 1827. Na ocasião se sabia da importância da hidratação parenteral, mas não havia sistemas adequados para administrar líquidos nas veias dos pacientes, sendo o método utilizado somente em moribundos.

Em 1860, na busca de um modo rápido para tratar a dor de pacientes, começaram a surgir os primeiros relatos de infusão de morfina subcutânea. Baseado nesse método, quando ocorreu um grande surto de cólera, em 1884, na região de Nápoles, o professor Arnaldo Cantani demonstrou a vantagem da hidratação por via subcutânea. Ele experimentara a ineficiência da infusão de fluidos pela via retal, prática empregada na época, assim como conhecia a dificuldade de puncionar veias colapsadas em pacientes desidratados. A terapia subcutânea – hipodermóclise – salvou inúmeras vidas, e o método passou a ser empregado em outras situações.

A melhoria da qualidade das agulhas permitiu o uso das infusões venosas de forma mais rápida, e isso foi consagrado durante a Segunda Guerra Mundial, levando ao abandono progressivo da via subcutânea.
No entanto, a medicina é como uma fantástica roda-gigante. Começamos lá de baixo e, aos poucos, conforme a roda se move, vamos subindo, até chegarmos ao topo, para depois descermos, com nosso olhar voltado à direção oposta de nossa subida.

Em pacientes que não conseguem ingerir líquidos e oferecem dificuldade de acesso venoso, principalmente em cuidados paliativos em residência, é necessário encontrar uma via alternativa, simples e segura.
A roda da medicina, movida pela força do humanismo, oferece a oportunidade de muitas voltas para visualizar o horizonte. Numa mesma altura podemos ter visões diferentes, se estamos subindo ou descendo. Conhecer a história desmitifica novidades, ajudando, dessa forma, muitos pacientes.

TCBC Alfredo Guarischi

Artigo publicado na edição on-line do O Globo no dia 19/02/2019.