Medicina desumanizada não é medicina

A medicina é fascinante e traz felicidade. Uma profissão eminentemente técnica, mas que jamais pode ser desumanizada.

Alfredo Guarischi

Cecília nasceu para ser feliz.

Morava numa pequena cidade no interior de Alagoas. Aos 14 anos notou uma tumoração dolorosa no seu ombro direito. Foram algumas idas e vindas a hospitais até seus pais receberem o diagnóstico desalentador de que sua pequena tinha um osteossarcoma, câncer ósseo, que comprometia toda a região de seu ombro. O tratamento proposto foi a amputação do membro superior.

A família resolveu vir para Rio de Janeiro, onde recebeu o mesmo diagnóstico e indicação cirúrgica. Era março de 1989, e a literatura médica tinha poucas referências sobre o trabalho de dois cirurgiões russos, Tikhoff e Linberg.

Boris Linberg (1885-1965) publicou mais de 150 trabalhos científicos dedicados a questões de cirurgia torácica. Em 1928, no Internacional Journal of Bone Surgery, conceituada revista médica americana, descreveu a técnica da retirada dos ossos e músculos do ombro em três pacientes portadores de tumores da região. Inovadora, a técnica preservava os nervos e vasos sanguíneos da região, permitindo que os pacientes pudessem continuar com os movimentos do antebraço, cotovelo e mão. Linberg já era um famoso cirurgião, mas não deixou de enfatizar o pioneirismo de seu compatriota, Professor Tikhoff, que havia descrito o procedimento em 1922.

Em medicina começamos com o que é possível, evoluímos para o necessário, até chegarmos ao que era impossível. Uma questão de tempo, perseverança, inquietude, e, por que não, fé.

Cecília tinha apenas 14 anos, mas muitos sonhos. Seu primo, um amigo e também cirurgião, havia assistido num congresso de cirurgia ao filme que eu havia feito alguns anos antes sobre a minha primeira cirurgia de Tikhoff-Linberg. O paciente era um jovem morador da Rocinha, com o nome de Tone Curti – com essa grafia. Sua cirurgia, ao ser filmada, numa obsoleta câmera de VHS, permitiu mudar a vida de outros tantos pacientes.

Com a compreensão do Diretor do Hospital de Oncologia, do SUS, pude operá-la, contrariando o senso comum da época. Optei pela minha inquietude e o desejo da minha paciente e de sua família. Em 3 horas e 45 minutos, sem transfusão de sangue, o impossível foi vencido. Todo o tumor foi retirado, com grande parte do longo osso do braço, parte da clavícula e da omoplata, assim como os músculos ao redor. Ao preservar os principais vasos sanguíneos e nervos, os movimentos do cotovelo de sua mão foram mantidos. Posteriormente Cecília foi submetida a quimioterapia, perdeu e ganhou novos cabelos, enfrentou duras sessões de fisioterapia e continuou sorrindo.

Nos anos seguintes casou, teve três filhos bonitos, dirige seu carro e tornou-se uma enfermeira dedicada.

Agora, em 2019, pude novamente abraçá-la e a sua família, comemorando os 30 anos da vitória da inquietude sobre a necessária, mas passageira, evidência científica.

A medicina é fascinante e traz felicidade. Uma profissão eminentemente técnica, mas que jamais pode ser desumanizada. Quando isso ocorre, deixa de ser medicina.

Tikhoff e Linberg me ajudaram a ser um homem feliz.

TCBC Alfredo Guarischi – 

Artigo publicado no jornal O Globo, 27/11/2019