Nota de pesar – ECBC Alfredo Guarischi

O amigo, médico, professor e escritor Alfredo Guarischi faleceu no dia 08/03/2022, na mesma cidade em que nasceu, em 23/09/1950. Sua formação básica deu-se no Colégio São Bento, onde começou a moldar sua trajetória sacerdotal com a Medicina, colégio do qual tinha imenso orgulho de ter sido aluno e fazia questão de mencionar sempre que podia em suas palestras, mantendo por toda a vida amizades eternas consolidadas nesta passagem fundamental da infância e adolescência em nossas vidas escolares. Seus colegas e amigos, mesmo os que seguiram outros caminhos profissionais, relacionam-se em grupo até hoje e sentiram profundamente sua partida. Tornamo-nos colegas de turma em 1969, na Faculdade Nacional de Medicina (FNM), hoje UFRJ, na linda e tranquila Praia Vermelha, no bairro da Urca, onde desde muito cedo mostrava sua inclinação para tornar-se cirurgião e professor,
assumindo a Monitoria da Cadeira de Anatomia desde o primeiro ano, estudando muito, dissecando cadáveres, ensinando aos colegas com entusiasmo e competência impressionantes.

A formatura em 1974 era o início de uma brilhante carreira e uma vida de trabalho árduo e profícuo, traçando uma formação técnica das mais sólidas que conheci. Residência médica e mestrado no Hospital Moncorvo Filho (UFRJ),
iniciando as atividades cirúrgicas no Hospital Souza Aguiar, neste mesmo período como “Cirurgião de Guarda”, onde desenvolveu habilidades táticas e estratégicas nas urgências e emergências cirúrgicas. Defendeu sua tese de mestrado “Traumatismos Duodeno Pancreáticos”, sugerindo e acrescentando importantes aspectos no tratamento dessas graves lesões. Trabalhou, como sempre, com grande intensidade nos hospitais da rede pública de saúde e em inúmeros hospitais privados do Rio de Janeiro por 10 anos, quando, em 1984, tornou-se Fellow pela Universidade de Toronto no Canadá e retornou ao Brasil em 1987.

De volta ao país, reiniciou sua jornada de trabalho intensa. Chefiou Serviços de Cirurgia nos Hospitais de Oncologia (INCA) por anos, acompanhado de equipes e colegas brilhantes que se tornaram referências de excelência em Cirurgia Oncológica, formando inúmeros cirurgiões que se espalharam por este nosso continental, múltiplo e belo país. Mais tarde, chefiou a Cirurgia no Hospital Souza Aguiar, no seio de uma crise de saúde pública sem precedentes, no final dos anos 80 e início dos anos 90. Destemido, como sempre, aceitou os desafios no meio do caos assumindo a responsabilidade, ajudando na recuperação técnica e gerencial daquela Unidade Municipal de enorme importância para o atendimento de doentes graves, localizado no coração da cidade desde sua fundação, há mais de 100 anos.

Tornamo-nos amigos através desses longos anos, após nossas graduações, enfrentando dificuldades e angústias semelhantes que a vida e a profissão nos reservaram naqueles idos. Sem perder o brio, o entusiasmo e a qualificação que sempre o distinguiu, e com a responsabilidade de chefiar Serviços Cirúrgicos de ponta com a necessidade de formar residentes qualificados, Alfredo propôs um programa de estágio nas áreas de Cirurgia Oncológica, Trauma e Emergências, tornando nossa aproximação mais sólida.

Sua alma era inquieta e sempre desejava mais conhecimentos, visando qualidade e melhorar sempre. Esta era a verdadeira preocupação desta mente brilhante. – “É urgente preparar as lideranças que cuidam dos pacientes cada vez mais graves e que chegam às nossas emergências, meu caro, nossa tarefa será hercúlea, mas produtiva”, comentava com entusiasmo. Sempre preocupado com a segurança dos pacientes cirúrgicos, com a organização de equipes e sistemas qualificados, multidisciplinares, assim como com o cuidado no treinamento de times de saúde e novos cirurgiões, o que o destacou e o distinguiu entre seus pares. Câmaras Técnicas de Segurança do Pacientes do CREMERJ e nas reuniões do CFM em Brasília, sempre representando o Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) através da comissão correspondente, a Comissão de Qualidade e Segurança que dirigiu no período de 2016 a 2019 com muita dedicação.

A relação da atividade médica comparada às de pilotos e policiais, nos processos decisórios em situações de alto risco que são submetidas e, principalmente, nos processos de prevenção e avaliação dos resultados das ações realizadas nessas profissões, elevaram o conhecimento e a utilização racional de protocolos, discutindo e ampliando o debate sobre essas atividades tão diversas, tornaram interessantíssimos suas palestras e escritos. Mostrando os pontos semelhantes e conectados. No artigo “Tomada de decisão”, uma de suas mais recentes contribuições, conclui de forma genial “Quem decide pode errar, quem se omite já errou.”

Sua capacidade de trabalho nos últimos anos aumentou significativamente, organizando congressos, dando palestras, aulas, escrevendo compulsivamente e operando nas horas mais imprevisíveis, como era de seu
feitio. Desfrutei o privilégio de compartilhar cirurgias com este admirável e habilidoso cirurgião, com ele aprendi muito. Nossos pacientes extremamente graves ou numa simples exérese de um pequeno tumor ou operações de pequeno porte, o seu comportamento era o mesmo.

A preocupação e os cuidados com os pacientes e sua relação com eles, eram reveladores. Seus sentimentos mais profundos de bondade, respeito e caridade o levavam à entrega absoluta aos doentes e levavam-no a assumir responsabilidades nas decisões difíceis, com a coragem dos bons combatentes. Sua robusta formação humanista deixava sua alma inquieta e questionadora em ebulição diante da realidade da saúde pública brasileira. Muitas vezes incompreendido em vários momentos de discussões e assembleias que os deixava angustiado, mas sabia, como poucos, transformar angústia e o sofrimento interior em trabalho produtivo e fecundo.

Sempre reflexivo e polêmico, nas salas de operações, nas salas de aulas, nos cursos e, principalmente, nas suas crônicas e artigos científicos, produzidos maciçamente nos últimos anos, fazendo revisão do passado recente e passado longínquo da cirurgia e da medicina, encontrando suas conexões, paradoxos e contradições, ele compreendia e interpretava magistralmente as histórias, seus atores, suas vidas e seus feitos.

Com habilidades cada vez mais apuradas na escrita, baseadas em sua genialidade, éramos brindados com suas crônicas e artigos semanais, através das redes sociais, nas revistas científicas ou no Boletim do CBC. Na qualidade
de diretor de comunicação no biênio 2018/2019 engrandeceu e desenvolveu protocolos e processos, ampliando os horizontes com auxílio de tecnologias da comunicação com competência, talento e muito trabalho.

Como professor nato, sua maior felicidade confessada publicamente foi retornar a sua tão querida Faculdade de Medicina, tornando-se professor voluntário no Hospital Universitário da UFRJ, sua derradeira alegria. As pessoas queridas não morrem nem desaparecem de nossas vidas, permanecem em nossas mentes e corações. Sua família, filhos e netos, assim como o legado deixado em sua grandiosa obra de criação literária, de mestre e, acima de tudo, os milhares de pacientes que foram beneficiados pela arte de ser médico na mais alta qualificação de cirurgião, refletem e retratam a vida de Alfredo Guarischi.

Dentre todas as suas obras, a mais delicada, amorosa, complexa e desafiadora foi deixar sua primogênita seguir seus passos e com ela caminharem juntos na qualidade de pai e mestre.

Savino Gasparini Neto – ECBC

Compartilho uma mensagem escrita por sua filha, também médica, Dra. Jéssic Guarischi, uma emocionante despedida de seu amado pai.

Carta ao Pai
“Tudo começou com um caderno que resolvi comprar, escolhi a capa do Super-Homem, pois sempre foi e será a maneira como te vejo. Queria escrever a jornada de sua internação contando todos os seus momentos de superação e de alguma maneira conversar com você através dele. Não esperava que o último capítulo seria escrito por mim. Ele estava ali, para você ler, reler e, quem sabe, publicar um livro. Sempre achei que haveria mais um capítulo da sua história. Continuo acreditando, porque nada se encerra por aqui. Quem diria que você, nascido na Ribeira (Ilha do Governador, no Rio) em 23 de setembro de 1950, iria alcançar vôos tão altos quanto a figura mítica de Ícaro. Como bom aluno do São Bento, sempre dedicado e com um livro na mão, começou sua vida médica na UFRJ, lá é sua casa
onde até hoje permanece como professor voluntário pela gratidão de anos de conhecimento adquiridos. No primeiro dia de aula, foi todo de branco, com jaleco de manga curta, recebendo o apelido de pipoqueiro. Quantos residentes acolheu na sua equipe cirúrgica, recém-formados, mas que você viu o potencial e o mesmo brilho no olhar que sempre carregou. Foi rigoroso, mas incondicionalmente generoso; foram muitos que aprenderam e sofreram com você. Pai, professores temos muitos, mestres, somente alguns. Considere-se um MESTRE.

Seguiu aprendendo e evoluindo em tantos outros hospitais, Moncorvo Filho, Souza Aguiar, onde descobriu sua paixão pelo trauma, Hospital da Lagoa, Miguel Couto, Inca, onde fundou um serviço. Dos particulares: São Lucas, Pró-Cardíaco, Samaritano, Hospital do Câncer e Rede D’or, consagrou-se e foi abraçado pela rede, levando um dos seus maiores projetos: capacitar profissionais para lidar com adversidades, entender o que são não conformidades, identificar o erro e mostrar que o verdadeiro trabalho depende de uma EQUIPE multidisciplinar, cada profissional é importante no ato de cuidar do paciente. Como você já me falou “Filha, o paciente tem a cara de quem o cuida“.
No trabalho na polícia, você desaguou seu espírito de combate que adquiriu nos anos de trauma, mas foi além: você humanizou as relações. Participou da invasão do Complexo do Alemão e ali você virou um combatente. “Ninguém fica para trás” e “Força e honra“, lemas que aprendeu com eles e aplicava na sua vida.

Na escrita, encontrou a voz que muitas vezes estava engasgada em sua garganta. Aprendemos muito com seus textos; quando solicitadas, Simone e eu fazíamos as revisões com carinho, porque sempre entendemos que aquilo também era uma maneira de permitir o aprendizado dos demais. Pai, você é um artista.

Sua capacidade de humanizar questões tão sensíveis vai além de sua habilidade técnica, como a maneira que sempre tratou seus pacientes, suas consultas duravam três, às vezes quatro horas, sempre saindo do atendimento sabendo e conhecendo-os a fundo: nome da mãe, nome do pai, suas angústias e frustrações, seus anseios e principalmenteseus medos. Pai, saiba que isso é um dom: o dom de ouvir.

Você pode ter certeza que muitos daqueles viraram seus amigos. Você resgatou famílias despedaçadas, trouxe acolhimento e cuidou de cada membro que também estava sofrendo pelo ente querido. Você sempre me falou: “Não existe o melhor médico do mundo, o que existe é o melhor médico para aquele paciente”, “Você não está tratando uma doença, você está tratando uma pessoa que tem família, lembre-se disso” e “Nunca tire a esperança de um paciente. Ali você tira a sua vida“.

Você conferia de maneira xiita cada exame, prescrições, ligava para patologistas para discutir os casos, corria para o hospital de madrugada para reavaliar pacientes de maneira canina. Pai, isso é compromisso.

Quando resolvi ser médica, a primeira frase que me disse foi: “Medicina é compromisso, não quero médico medíocre na família”. Tenho tantas lembranças com você, você não imagina…

Em 2019, quando eu era R1 (Residência 1), no Dia dos Pais, estava de plantão. Sabia que não poderia estar contigo, mas lá foi você até o Pedro Ernesto, me acompanhar na visita aos MEUS pacientes e celebrar o SEU dia. Não me esqueço da frase: “Esse foi o melhor Dia dos Pais que tive”. Pai, foi através de pequenos exemplos seus que aprendi
o que é amar o que fazemos. Inquieto, incansável, briguento e, por muitos, incompreendido, mas sempre ético, firme, honesto. Todas as brigas se tornaram pequenas depois que conheci e reconheci quem era o Dr. ALFREDO GUARISCHI, o meu PAI. Você me ensinou que vencer é nunca desistir. Vencer é lutar.

E você lutou, lutou muito pelos seus valores, pela sua ética, pelos pacientes, pela sua felicidade em ser médico e pela sua vida. A cavalaria branca entrou pela porta da frente, deu tudo de si, o impossível foi feito. Pai, você foi tratado pelos melhores, por aqueles que ESCOLHEU com carinho e, sobretudo, DIGNIDADE. Hoje, eu perdi o meu grande mestre, professor, meu amigo, meu amado pai. Você deixará um vazio e dor em todos aqueles em que tocou a vida e a alma. Sua perda é irreparável. Seguirei COM SEU LEGADO honrando sua trajetória e ancestralidade. EU SOU UMA GUARISCHI.

Acompanhe-me, voe e voe alto, acompanhe-nos aqui. Meu guerreiro, vá e vença. EU TE AMO, PAPAI”. Por sua eterna samurai, Jessica Guarischi.