O spirophore, o barospirator e 2020

ECBC Alfredo Guarischi

Em 1926, a Companhia de Gás de Nova York criou um projeto de reanimação cardiovascular para tratar operários vítimas de asfixia.
O engenheiro Philip Drinker e o fisiologista Louis Shaw, ambos da Universidade de Harvard, tiveram seu projeto escolhido. Eles pesquisavam um método de respiração artificial em gatos. Os animais, colocados numa caixa de ferro totalmente selada com apenas com a cabeça e pescoço do lado de fora, tinham os músculos paralisados com um medicamento – curare – que os impedia de respirar. Os pesquisadores conseguiram mantê-los vivos dentro da caixa, cuja pressão interna era alternada entre negativa e positiva; dessa forma, o tórax do animal era movimentado, fazendo com que o ar entrasse e saísse de seus pulmões.

Com o sucesso do experimento, construíram um tanque maior, para ser usado em pacientes. Atualmente isso não teria sido tão rápido, porque precisaria passar por conselhos institucionais de pesquisa. Nos EUA, entre 1915 e 1945, houve a aterrorizadora epidemia de poliomielite, com mais de 5 mil casos por ano e alta mortalidade decorrente da infecção respiratória que causava. Na época era praticamente impossível manter artificialmente uma boa oxigenação por um longo período. Nesse contexto, o pediatra Charles McKnann, do Hospital Infantil de Boston, pediu ajuda a Drinker para cuidar de uma menina de oito anos de idade afetada por poliomielite que não conseguia respirar. Drinker instalou o pulmão de aço no hospital e, tratada com ele, em pouco tempo ela recuperou a consciência. A criança permaneceu no respirador por 122 horas, mas infelizmente morreu.

Drinker e McKnann, ao publicarem esse relato no Journal of the American Medical Association, em 1929, reconheceram o pioneirismo do sueco Torsten Thunberg, que em 1924 havia desenvolvido o barospirator.
O respirador Drinker & Shaw, um aperfeiçoamento do aparelho de Thunberg, foi um sucesso, mas seu alto custo – 2 mil dólares – e o longo tempo para sua fabricação não atendiam ao crescente número de vítimas que precisavam de respiradores mecânicos. Isso estimulou outros inventores a tentaram novas alternativas.

Em 1931, o empresário John Emerson fabricou uma versão mais barata e com portas laterais, o que permitia às enfermeiras manusearem o paciente sem causar interrupção no tratamento. Era menor e ainda tinha uma bomba auxiliar manual para ser utilizada no caso de falha na corrente elétrica. Além disso, havia um mecanismo que permitia ajustar a taxa de respiração, e seu diafragma de couro não produzia o forte ruído do soprador do respirador Drinker.

Drinker e a Universidade de Harvard processaram Emerson por violação dos direitos de patente, numa batalha que durou três anos. Emerson rebateu a acusação perguntando “se a universidade propôs exercer sua influência na criação de um monopólio de dispositivos que salvam vidas, para benefício financeiro”. Nessa época, Drinker já havia vendido os direitos da sua patente para a Warren Collins Company, em troca de royalties de 200 dólares para cada máquina vendida. Os advogados da Collins alegavam que, “ao contrário de muitos processos em que a manutenção de royalties é o principal ponto”, a então disputa era em busca de um “acordo de fixação de preços”.

A justiça derrubou as patentes envolvidas na disputa, pois considerou que uma invenção que beneficia a humanidade deveria ser disponibilizada a todos e que o respirador de Drinker era apenas uma versão melhorada dos respiradores anteriores, como o de Eugène Woillez. Esse médico francês era defensor de que “a principal razão para a entrada de ar nos pulmões não é a pressão do ar, mas a expansão da cavidade torácica pelo movimento dos músculos torácicos e do diafragma”. Em 1876 ele criara um respirador de tanque, chamado spirophore, que envolvia o corpo, exceto o pescoço e a cabeça, no qual um fole operado manualmente gerava mudanças de pressão que movimentavam a parede torácica do paciente. Drinker também parece ter esquecido lembrar aos seus advogados o que havia escrito sobre o trabalho Thunberg de 1924.

A história do pulmão de aço mostra a interseção de inovações científicas, disputas financeiras e o questionamento sobre se uma invenção ou medicamento que pode salvar vidas durante uma tragédia sanitária deve estar sujeito aos padrões gerais de propriedade intelectual.

Nada mais atual esta oportunidade de se revisitar a História, velhas técnicas e aparelhos, a fim de se mudar o presente assustador com novas invenções.