Os leitos invisíveis de CTI

Alfredo Guarischi, ECBC

Enquanto buscamos um tratamento e uma vacina para esta pandemia, continuamos enfrentando o infarto, o câncer, as peritonites e centenas de outros diagnósticos. Faltam vagas para esses pacientes, que não desapareceram.

Hans Christian Andersen (1805-1875), escritor dinamarquês, ficou mundialmente conhecido pelas suas histórias infantis. As roupas novas do imperador é um dos seus principais contos. 

Publicado em 1837, narra a história de um soberano que gastava o dinheiro do reino com roupas. Vigaristas, percebendo o desprezo do rei pelo seu povo, ofereceram tecer trajes que seriam invisíveis para todos aqueles que fossem tolos e presunçosos. O caudilho de imediato entregou fortunas aos falsos tecelões, enviando bem remunerados ministros para fiscalizar a apoteótica obra. Esses capachos, mesmo nada vendo, aplaudiam o desejo de Sua Majestade. A consagração seria um grande desfile pela cidade, provando que todo dinheiro público gasto deixaria um legado nunca antes visto. Nesse dia especial, o governante, sem trajar o decoro exigido para o cargo, completamente nu e dissimulado, foi às ruas. Seus bajuladores o aplaudiam, até que uma criança, do meio da multidão, gritou: “O rei está nu!” O povo começou a cochichar, e, em seguida, ouviram-se gritos: “O rei está nu!”

Esse texto continua atual diante do que vem ocorrendo em relação à falta de leitos de CTI: menos de 10% de todos os 5.570 municípios brasileiros têm esses leitos especializados. Há décadas a imprensa noticia que alguém morreu recorrendo à Justiça enquanto aguardava uma dessas vagas.
A Dra. Rosane Goldwasser e colegas da UFRJ em 2016 publicaram, na Revista de Saúde Pública da USP, um contundente artigo: Dificuldades de acesso e estimativas de leitos públicos em unidades de terapia intensiva no Estado do Rio de Janeiro. Esses médicos, que vivenciam há anos o problema, bradaram que a demanda por leitos de CTI cresceu substancialmente devido à população cada vez mais longeva e com mais morbidades. Sessenta por cento dos leitos são ocupados por pacientes acima de 65 anos, que têm um tempo de internação sete vezes maior em comparação à população mais jovem, e mais de 70% das mortes hospitalares ocorrem no CTI. Concluíram que a disponibilidade de leitos muda frequentemente.

O novo coronavírus desmascarou o desprezo antigo pelo SUS, em cujos hospitais sobram macas em corredores, mas faltam leitos de CTI, respiradores adequados e especialistas. Fica a pergunta: Onde está o legado dos Jogos Pan-Americanos de 2007, da Copa do Mundo de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016? O que fazer com os soberanos que tanto dinheiro deram aos vigaristas, os cortesãos que fiscalizaram, os neutros que aplaudiram o desfile da desfaçatez? Alguns justificam que nada sabiam ou que haveria “ganhos” para a cidade e o país.

A Associação de Medicina Intensiva, no dia 1º de maio, fez recomendações de como alocar recursos em esgotamento durante a atual pandemia, com base em princípios éticos já amplamente praticados, porém reconhecendo que nenhum protocolo de triagem é perfeito. 

Nós médicos sabemos que o dia de ontem foi melhor que o de hoje, mas não abandonaremos ninguém. Enquanto buscamos um tratamento e uma vacina para esta pandemia, continuamos enfrentando o infarto, o câncer, as peritonites e centenas de outros diagnósticos. Faltam vagas para esses pacientes, que não desapareceram.

O desprendimento dos profissionais de saúde e a iniciativa privada séria, criando novos leitos sem custo para o setor público, tentam transformar um conto de fadas em realidade. Continuaremos a ter que fazer escolhas complexas, mas atualmente há mais de mil leitos de CTI ociosos em hospitais públicos no RJ. Em outros estados há casos semelhantes.

Diante de tantas incertezas, as lições de resiliência ajudam na resolução dos conflitos para evitarmos confrontos que sempre trazem mais sofrimento.