Pesquisa em Medicina

ECBC Alfredo Guarischi

Algumas reflexões sobre o papel da pesquisa científica

Introdução

Os ensaios clínicos são a maneira mais adequada de testar novos métodos de tratamento de problemas de saúde. São realizados em várias etapas ou fases. Cada uma busca responder a perguntas específicas. As primeiros fases verificam se um novo tratamento é seguro e quais seus efeitos colaterais mais ameaçadores. As fases posteriores visam testar se o novo é melhor do que os já existentes.

Ética em pesquisa

Os centros de pesquisas devem ter comitês para avaliar e acompanhar os protocolos de pesquisa, seguir diretrizes internacionais e nacionais e rever os resultados de forma periódica, para propor ajustes, mudar a metodologia ou até mesmo suspender projetos de pesquisa. Esses comitês visam a salvaguardar a dignidade, os direitos e a segurança dos participantes. O paciente ou seu responsável legal deve ser informado, de forma clara e compreensível, dos potenciais riscos e eventuais benefícios do experimento proposto e formalmente autorizar sua inclusão no experimento.

No Brasil, temos também as normas do Conselho Nacional de Controle de Experimentação Animal (Concea) e da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), que implementa normas e diretrizes aprovadas pelo Conselho Nacional de Saúde para experimentos com pessoas.

Deve ser sempre assegurado que o paciente pode deixar a pesquisa a qualquer momento, garantindo-se que continue sendo cuidado. Qualquer tratamento experimental deve se orientar pelo Código de Nuremberg (1947), pela Declaração de Genebra (1948) e pela Declaração de Helsinki (1964).

 Se desrespeitar essas normas, mesmo alegando estar cumprindo ordens, o médico e a instituição de saúde estarão cometendo um crime. Não há espaço para obediência cega.

Fases do ensaio clínico

São quatro as fases de um estudo clínico, antecedidas por uma fase 0 ou pré-clínica, feita unicamente em laboratório. A fase I testa se um novo medicamento é seguro e busca a melhor maneira de administrá-lo. A fase II verifica se o tratamento surte algum efeito para aquela condição de saúde. A fase III visa a comprovar se o novo tratamento é melhor que um antigo, padrão, no caso de ele já existir. A fase IV procura obter mais informações sobre os benefícios do medicamento testado e seus possíveis efeitos colaterais.

Podem transcorrer mais de oito anos para todas essas fases serem concluídos com segurança. A aspirina, uma das primeiras drogas a entrar em uso comum, foi patenteada em 1897 e ainda é uma das drogas mais pesquisadas no mundo, com uma estimativa de 700 a 1.000 ensaios clínicos realizados a cada ano.

Fase pré-clínica ou fase 0

Os estudos pré-clínicos se iniciam usando culturas de células humanas ou empregando animais de laboratório, os chamados testes de bancada, para verificar como o medicamento interage, podendo durar meses até avaliar as diversas perguntas iniciais para quais foram programados.

São realizados inúmeros experimentos, com diferentes doses e modificações das condições locais, para estimar o que ocorre numa situação controlada, de modo a se conhecer como aquela molécula vai agir no cenário montado no laboratório. Esta é, pois, uma pesquisa in vitro.

Seus diversos resultados serão comparados aos de outros estudos, para orientar o pesquisador a seguir adiante, propondo ou não um estudo em pessoas, ou continuar ainda no laboratório. Isso acarreta dilemas éticos, pois eventuais resultados brilhantes in vitro podem ser desastrosos em pacientes. A complexidade e a urgência do problema influenciam essa decisão.

Fase I

Aprovada pelas instâncias competentes, a pesquisa se inicia. O estudo em fase I recruta pacientes voluntários que deixaram de se beneficiar de um tratamento padrão ou para os quais não há opções conhecidas de tratamento. Por segurança, envolve um número pequeno de pacientes, em geral de 15 a 30. Visa primariamente a identificar a biodisponibilidade do medicamento, seu metabolismo e suas formas de eliminação do organismo humano; a melhor via de administração (se oral, intravenosa, muscular, inalatória ou tópica); sua posologia (dose e intervalo de tempo); interações com outros medicamentos usados no tratamento do paciente; a dose máxima tolerada e toxicidades. Para isso, pequenos grupos de seis pacientes recebem um tipo específico de protocolo.

A dose inicial tem por base os estudos preliminares em animais. Como são inúmeras as variáveis, diversos estudos fase I precisam ser realizados, para responder às diversas dúvidas que existem com o uso em humanos de uma nova molécula. Embora a pesquisa em animais forneça algumas informações gerais sobre a dosagem, os efeitos de um medicamento no corpo humano podem ser imprevisíveis. Algumas pessoas podem-se beneficiar do novo tratamento, mas muitas, não.

Os resultados, positivos e negativos, devem ser publicados em revistas especializadas. Estudos negativos vão ajudar a estruturar novas pesquisas em fase I. Estudos positivos, menos frequentes, acabam recebendo mais atenção das revistas científicas. Aproximadamente 70% dos medicamentos passam da fase I para novos estudos de fase II.

Fase II

Os estudos em fase II envolvem várias centenas de participantes e visam observar a taxa de resposta dos pacientes tratados com o novo medicamento. Esses dados são comparados com a taxa de resposta observada nos pacientes tratados com medicamentos tradicionais e já conhecidos.

Uma ajuda nessa comparação retrospectiva é recorrer às publicações de artigos de meta-análise qualificada (peer review). Esse tipo de revisão científica identifica padrões de respostas, fontes de discordância ou outras relações existentes no contexto de vários estudos analisados de forma conjunta. Comparando a taxa de resposta do tratamento experimental com a média ponderada e ajustada das taxas dessas meta-análises, pode-se estabelecer se há vantagem teórica do novo tratamento, se ele apresenta eficácia (se funciona) e efetividade (o quanto é bom). Havendo essa superioridade, teórica e retrospectiva, os pesquisadores estão autorizados a passar para a fase seguinte do estudo.

São despendidos vários meses ou anos, conforme a doença e sua manifestação clínica, para concluir os estudos da fase II, sendo estimado que apenas um terço dos medicamentos testados passe para a fase III.

Fase III

Nos ensaios de fase III é feita uma comparação em tempo real entre dois grupos de pacientes. Um grupo chamado experimental receberá o medicamento que está sendo testado, e o outro grupo, chamado controle, receberá o tratamento padrão ou, na ausência de evidência científica da existência desse tratamento, um placebo (substância sabidamente inócua).

Para assegurar que os grupos são comparáveis e apenas divergem sobre o uso ou não do medicamento experimental, é necessário que a pesquisa selecione os pacientes de forma balanceada em relação aos fatores de risco e que os pacientes e os pesquisadores não participem dessa escolha. Essa é a randomização, técnica na qual a escolha do grupo no qual cada paciente será alocado – estratificação – ocorre aleatoriamente, por sorteio. Assim, cada grupo terá praticamente o mesmo número de pacientes em relação a idade, sexo, peso, doenças ou cirurgias prévias, tratamentos anteriores e outras variáveis. Por isso a escolha não pode ser apenas por ordem de chegada ou se o último número do documento de identidade do indivíduo é par ou ímpar. Os grupos devem ser o mais homogêneos possível, pois o predomínio de pacientes com alguma característica específica pode resultar em conclusões equivocadas dos resultados. Daí a necessidade de um grande número de pacientes em cada grupo, para diminuir a chance de isso ocorrer.

Esses ensaios clínicos também devem ser preferencialmente duplo-cegos, o que significa que nem o participante nem o investigador sabem qual medicamento aquele está usando, para evitar viés na interpretação dos resultados.

Os resultados devem receber uma análise estatística, pois, por exemplo, um resultado positivo com uma diferença de 10% entre dois grupos pequenos de pacientes não terá significado estatístico, e, então, o tratamento pode não ser realmente superior se aplicado a mais pacientes. Por isso a fase III, que compara tratamentos, necessita de milhares de pacientes e em geral é realizada por um consórcio multicêntrico de instituições. Isso implica custos enormes com o medicamento e pagamento das despesas das instituições, dos pesquisadores, da logística, dos constantes exames de laboratório e de imagens para acompanhamento dos pacientes, dos programas de informática para consolidar dados e permitir análises seguras e dos encontros entre os diversos pesquisadores envolvidos.

Por outro lado, estudos internacionais, por envolverem culturas organizacionais diferentes, aumentam a sensibilidade do estudo. Uma taxa de resposta que é semelhante em todas as instituições facilita implantar ou rejeitar o tratamento em larga escala. Porém, se o resultado obtido por uma determinada instituição é muito diferente do alcançado pelas demais, isso vai merecer uma análise especial. Esse é um ponto de enorme importância, pois, se uma única instituição, mesmo de reconhecida visibilidade científica, realiza isoladamente um estudo seguindo todas as diretrizes internacionais e obtém um resultado excepcional, positivo ou negativo, não significa que toda a comunidade científica deve segui-la, pois pode ter havido detalhes sutis ou culturais não expressos de forma clara. O estudo poderá ser válido, estar correto, mas precisa ser validado por outras instituições para virar uma rotina.

Há fatos relacionados aos custos das pesquisas e desconhecidos da maioria das pessoas. O primeiro é que a validade das patentes dos medicamentos não ultrapassa 20 anos, período a partir do qual qualquer laboratório pode produzi-lo sem pagar royalties para o detentor da patente. O segundo ponto está relacionado ao longo tempo despendido no desenvolvimento de uma nova droga, que pode ultrapassar oito anos, considerando desde os testes de bancada até sua aprovação para uso clínico, a um custo de centenas de milhões de dólares. Por fim, é importante lembrar que, entre as centenas de moléculas testadas em bancada, muito poucas serão testadas em estudos em fase III. Para mitigar esses custos e o tempo despendido, os patrocinadores têm interesse em que, demonstrada a não inferioridade do medicamento novo que está sendo testado comparado com o tradicional, sem reserva de patente, ou cuja patente está preste a expirar, ele já possa ser comercializado em larga escala, terminado esse estudo fase III, com base no princípio de que teria alguma vantagem, por exemplo, por estar sendo indicado em uma dose menor, ou ser de uso oral ou subcutâneo, vias que trazem vantagens de custo e praticidade.

Aprovado o estudo pelos órgãos governamentais de controle do uso de medicamentos (Anvisa no Brasil, FDA nos Estados Unidos, NPSA no Reino Unido, ANSM na França, AEZQ na Alemanha), a mesma molécula, administrada de forma diferente, será considerada uma nova patente. Não há nada de antiético nessa visão, afinal o medicamento é tão eficaz e eficiente como o tradicional, porém isso inibe o interesse em testar moléculas inovadoras. Essa patente renovada é comumente divulgada pelo marketing do laboratório como “ganho terapêutico”, quando deveria ser explicitado que não há aumento na taxa de resposta.

Cabe aos profissionais que atuam diretamente com pacientes, que atendem na ponta do sistema e que são os que mais prescrevem, diferentemente dos que estão ligados a centros de pesquisa, mas grandes formadores de opinião, entenderem o real significado disso. A substituição de um medicamento comprovadamente eficaz e usado por longo tempo por um outro considerado não inferior ao tradicional, baseada apenas em vantagem na posologia ou via de administração, mas com maior custo, deve ser contextualizada. Com frequência há impacto no custo final do tratamento.

Precisamos de mais pesquisas cuja meta seja provar a superioridade mais ampla do novo fármaco testado, de forma que medicamentos inovadores, como ocorre com os antivirais e produtos biológicos, possam ficar mais rapidamente disponíveis.

Devido ao maior número de participantes e maior duração dos estudos em fase III, determinados efeitos colaterais não descritos são identificados durante essa fase. Apenas um quarto dos protocolos em fase III passa para fase IV.

Fase IV

Os ensaios clínicos de fase IV envolvem muitos milhares de participantes e pode durar muitos anos. Os investigadores usam essa fase para obter mais informações sobre a segurança, a eficácia e outros benefícios a longo prazo do medicamento. Muitas das toxicidades tardias e interações medicamentosas dependem de sistemas de notificações feitas por hospitais de referência ou instituições de pesquisa, porém  a prescrição da imensa maioria dos medicamentos é feita ambulatorialmente. Os médicos, enfermeiros e farmacêuticos clínicos (que lidam diretamente com os pacientes) não dispõem de sistemas de notificações ágeis e fáceis de utilizar, o que contribui para a demora de anos para serem identificados efeitos adversos, principalmente quando se administram múltiplos medicamentos. A troca constante do medicamento fabricado por diferentes laboratórios é outro enorme desafio para identificar eventos adversos ou interações medicamentosas ainda não percebidas.

A rastreabilidade do medicamento é outro mecanismo fundamental de segurança – farmacovigilância –, pois facilita identificar se o evento adverso ocorreu com um determinado lote de medicamento ou ao longo de um local específico pelo qual o produto passou desde a sua produção até ser administrado ao paciente. Os serviços de assistência ao consumidor dos laboratórios são importantes e ajudam, mas seria mais abrangente se houvesse sistemas de informática, simples de serem acessados, nos quais os pacientes pudessem relatar sua experiências, com a identificação do produto, tempo de uso e uma biblioteca de termos para organizar as informações.

Conclusão

Os ensaios clínicos com moléculas ou formulações químicas permitem que novos medicamentos ou formas diferentes de utilizar medicamentos tradicionais sejam avaliados adequadamente antes de serem aprovados para uso público.

A pesquisa clínica é fundamental e deve responder a quatro questões básicas sobre um novo produto: se é eficaz (se funciona); se é efetivo (o quanto é bom); se é  eficiente (qual a dimensão do seu custo, em todas suas variáveis); e qual sua equidade (quem e quantos indivíduos poderão se beneficiar dele).

A ciência é o que melhor ilumina a vida.

O resto é jogar uma moeda para o alto.

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