Artigo: Ser médico é assumir a responsabilidade

Francis Moore (1913-2001) foi uma pessoa plural. Antropólogo, estudou latim e alemão, tocava clarinete e piano. Escreveu e orquestrou várias peças teatrais. Tornou-se consultor da NASA.

 Diplomou-se em medicina pela Harvard em 1935, assumindo a chefia da Cirurgia em 1947. Foi o editor-chefe da mais respeitada revista médica do mundo, o The New England Journal of Medicine. Sua frase predileta era “Por que não fazer melhor da próxima vez?”

Considerado pela revista Time em 1963 o Cirurgião do Século, foi um inovador e escreveu que “o investigador cirúrgico deve fazer uma ponte entre a biologia e o paciente, consciente de que vão dizer que ele não é um cientista completo, e outros alegarão que ele não fica tempo suficiente na sala de operações”.

Entre inúmeras publicações, o seu livro “O cuidado metabólico do paciente cirúrgico”, de 1959, é um marco sobre os cuidados médicos. Sua leitura deveria ser obrigatória, inclusive para os burocratas e economistas que, sem jaleco, insistem em comandar a saúde.

Achou estranho? Explico.

 

 

Moore deixou clara a importância de estudar pacientes individualmente, o que permite aprender sobre uma grande variedade de situações relacionadas ao enfermo, a equipe e as condições do atendimento.

Atualmente, no sistema de saúde, muitos defendem o caminho inverso. Buscam analisar o todo – “big data”-, na premissa de que o conhecimento das variáveis e diagnósticos de um grupo de pacientes permitirá uma maior previsibilidade e eficácia, tanto clinica como econômica. Essa matemática teria probabilidade de estar correta, desde que o “diagnóstico estivesse completo” (não escrevi “correto”, caro leitor), e o paciente e os profissionais de saúde não tivessem suas individualidades. Robotizar profissionais, seguir algoritmos engessados e descredenciar a inteligência natural virou um mantra. Um uso artificial dos benvindos avanços tecnológicos.

Novamente temos o alerta de Moore sobre a importância das pesquisas médicas, muitas sem aplicabilidade imediata, mas que, em algum momento, salvarão vidas e diminuirão custos. Se não forem testadas sob a égide da ética, jamais saberemos seus resultados práticos.

As previsões desse sensível homem ficaram demonstradas com o transplante de órgãos, as novas modalidades de imagem, a cura de diversas formas de câncer e perspectivas de manipulação de genes.

Mas há inúmeras outras questões e a ajuda de Moore é importante.

Em sua autobiografia “Um milagre e um privilégio” escreveu que “não se deve dizer: eu sou um corpo, eu tenho uma alma, mas sim: eu sou uma alma que vive em um corpo. Quando a morada (o corpo) não é mais habitável pela alma, é melhor deixá-la partir”.

Esse extraordinário chefe de família, músico, velejador, cientista e cirurgião, na introdução de seu livro sobre metabolismo, afirmou que “o fundamental do cuidado médico é assumir a responsabilidade”.

Sua afirmação continua atual e serve para toda a sociedade, pois estamos de passagem. Cabe a nós, humanos, nos entendermos.

TCBC Alfredo Guarischi

Artigo publicado no jornal O Globo, edição de 08/07 no jornal Globo edição on-line