Transfusão de amor

Quem tem saúde não corre risco ao doar sangue, restituindo a vida, na maioria das vezes, a um desconhecido

TCBC Alfredo Guarischi, médico


A transfusão de sangue é o transplante mais frequentemente realizado em todo o mundo, e, como os demais, para ser bem sucedido, precisa da compatibilidade entre doador e receptor. A hemoterapia, especialidade médica que tem uma história fascinante, tornou a transfusão de sangue e seus derivados um tratamento seguro. O entendimento científico, aliado à doação voluntária, controlou o desastre de transfusões contaminadas com vírus da hepatite e do HIV, ajudando a salvar, a cada ano, milhões de vidas.
As primeiras transfusões começaram em 1665, em Oxford (Reino Unido), feitas em animais. Já as primeiras experiências com humanos têm registro em 1667, com o médico do rei Luís XIV, que injetou sangue de carneiro em um enlouquecido nobre que andava nu pelas ruas de Paris. O paciente faleceu após a terceira transfusão. Posteriormente, essa prática de transfusão heteróloga — entre animais e humanos — foi proibida.
Em 1829, a revista “The Lancet” publicou o primeiro caso de transfusão sanguínea homóloga — entre pessoas — com sucesso, realizada por um obstetra inglês, muito antes da descoberta, em 1901, dos tipos sanguíneos A, B e O. O fator Rhesus (RH positivo ou negativo) só foi identificado em 1939.
Hoje podemos transfundir cada um dos componentes do sangue de forma segura; os frascos de vidro e a seringa que permitiam retirar o sangue do doador e injetá-lo no do receptor, em segundos — transfusão braço a braço —, são passado. Contudo, foram anos de desconfiança e dúvidas.
No Brasil, o “Jornal do Comércio” publicou com destaque, em 1838, que “na importante e curiosa operação de transfusão do sangue em Londres (…) madame Harsley, que estava perto de expirar por conta de uma violenta hemorragia (…) após duas sangrias ao esposo e a irmã da doente, e, introduzindo pouco a pouco o sangue nas veias da moribunda, ela foi lentamente recobrando-se”.
Em 1926, foi publicada no GLOBO a notícia de “que recorremos ao meio extremo da transfusão do sangue (…) para vermos se poderíamos prolongar a vida (…), o que infelizmente não logramos conseguir. Essa providência foi tomada depois de ouvirmos o nosso médico e particular amigo Dr. Pedro Ernesto”.
Em 2017, um bebê na Colômbia com um tipo raro de sangue — fenótipo Bombaim — foi salvo graças ao sangue de um doador cearense. Algumas vezes é necessária uma grande quantidade de doadores para encontrarmos o tipo sanguíneo compatível com o do receptor.
Por tudo isso, não espere o Junho Vermelho para doar, pois não há um mês predeterminado para esse ato de amor. Quem tem saúde não corre risco ao doar sangue, restituindo a vida, na maioria das vezes, a um desconhecido. Isso é caridade e amor ao próximo.

Publicado em 22/05/2018 no O Globo – Sociedade