Trauma, um problema de saúde

Os traumatismos não têm hora, dia ou local para ocorrer. Não poupam ninguém, nem um bebê dentro de seu carrinho ou na barriga de sua mãe. Não poupam políticos, empresários ou gente rica.

Mais de 100 mil brasileiros morrem vitimados por traumas todos os anos. Cerca de 60 mil óbitos decorrem da barbárie das facas e dos fuzis, e outros 47 mil, de acidentes de trânsito, sem contar os afogamentos, queimaduras, acidentes domésticos e no trabalho. O número de suicídios é crescente.

Os anos de vida perdidos são uma tragédia.

Explico: o brasileiro atualmente vive em média até os 76 anos de idade; numa estimativa superficial, as doenças cardiovasculares e algumas formas de câncer levam à perda média de 15 anos de vida; já as vítimas de traumas perdem 30 anos. Além das mortes, mais de 500 mil pessoas são feridas e mais de 50 mil sobrevivem com sequelas dolorosas e com elevado custo econômico.

Muitos pacientes sofrem traumas múltiplos, necessitando do atendimento de diverso especialistas. Por isso, não adianta ter um neurocirurgião num hospital e um cirurgião torácico em outro. É preciso manter equipes fixas de especialistas, o que evitaria mortes e sequelas.

Em países com sistema regionalizado de atendimento ao traumatizado, metade das mortes ocorre no local do acidente ou da agressão. Nas horas subsequentes, falecem 30% dos sobreviventes iniciais, e apenas 20% das mortes ocorrem dias ou semanas após a lesão, sendo essa letalidade diretamente relacionada tanto à gravidade do trauma quanto à rapidez e à qualidade do atendimento inicial e continuado.

Na maioria dos grandes centros urbanos brasileiros, os bombeiros e grupos de resgate têm feito um excelente trabalho, permitindo que mais pacientes cheguem vivos aos hospitais, cujas equipes desfalcadas se desdobram realizando procedimentos de urgência com sucesso, mas sem conseguir que haja o acompanhamento posterior necessário. Aqui a pirâmide da letalidade é quase invertida. Inacreditável!

Perdemos uma grande oportunidade com os Jogos Pan-Americanos, Mundial de Futebol e Olimpíadas. Onde está o alardeado “legado para a saúde”? Quem pode esclarecer isso?

O trauma é a doença evitável mais letal e custosa que acomete nossa sociedade. Assim, investir na organização de um sistema de atendimento ao trauma é prioritário. A participação da iniciativa privada é bem vinda, lembrando que a população que paga planos de saúde, continua recorrendo ao sistema público, que não exige senha ou a carteira de plástico.

É preciso contratar principalmente mais cirurgiões gerais e intensivistas para coordenar esses atendimentos. Essa é uma atividade desgastante, que necessita de substituições e relocações de pessoal de forma paulatina, mas contínua, como ocorre nas forças policiais especiais. Não faltam especialistas para serem efetivados, mas falta um sistema coordenado, sem intermediários e com comando despolitizado. Falta governança.
O tratamento do trauma exige um sistema organizado e regionalizado, 24 horas por dia, 365 dias por ano.

TCBC Alfredo Guarischi

Publicado no jornal O Globo – Opinião – 01/01/19