Um plantão médico não se esquece

A jovem médica já tinha experiência em trabalhar em serviços de emergência, mas aprendera que cada paciente e cada hospital têm suas características próprias.

Alfredo Guarischi

Deu plantão por mais de um ano na UPA da Cidade de Deus. Viu gente humilde, viu idosos com muitas receitas e pouco tratamento. Presenciou pessoas chegando mortas, muitas pela violência. Passou um Ano Novo ao som de fogos de artifício e tiros reais. Amadureceu. Chorou.

Depois foi trabalhar onde os planos de doença, direções de hospitais e profissionais de saúde se equilibram. Fraturou uma vértebra numa queda durante um plantão e chorou com a solidariedade de todos os seus colegas e o desprezo de alguns gestores. Sentiu muita dor. Muito medo quanto ao futuro.

Nos momentos de “folga” da residência médica, enfrenta novos desafios. Semana passada foi seu terceiro plantão num hospital oncológico onde um dia Frei Bispo do Desterro reinou.

Do colega que saía, recebeu a lista dos pacientes internados, com as pendências a serem resolvidas e as orientações dos médicos titulares. Hospital organizado.

Conheceu Roberta, um nome imaginado, mas uma dura realidade.

Com pouco mais de 40 anos de idade e um filho pequeno, Beta estava internada com metástases, apesar do intensivo tratamento ao qual fora submetida na tentativa de controlar um agressivo tumor. Seus médicos haviam conversado com ela e alguns de seus familiares sobre medidas de conforto. Não é uma questão que um protocolo ou a estatística resolva. Não há regras definitivas.

Era uma psicóloga, bonita, com cabelos curtos que cresciam alegremente após o término da quimioterapia. Estava sedada e, mesmo assim, sua irmã mais velha “conversava” com ela.

Sua respiração irregular levou as enfermeiras, todas jovens, a sugerirem sua transferência para o CTI. A doutora conversou pausadamente com as equipes de enfermagem, fisioterapia, limpeza e copa, após rever o prontuário de Beta e se aconselhar com o plantonista mais experiente e veterano no hospital. Não faltava vaga na unidade de cuidados intensivos, mas no quarto sobravam ternura e silêncio. A todas mostrou os exames e detalhou o tratamento a que a paciente havia sido submetida. Explicou que acompanharia a paciente e sua irmã, que chamarei de Michelle, como a da canção dos Beatles.

Michelle sabia que o tempo com a irmã estava se esgotando. Indagava quem ficaria com Beta, pois precisava comer algo. Respirar. Talvez, quem sabe, gritar. A jovem médica se prontificou a continuar a “conversar” com Beta. Em menos de meia hora, Beta tinha suas mãos entrelaçadas agora pelas das duas jovens, uma nascida em Mesquita, na Baixada Fluminense, e outra, em Toronto, Canadá.

Quase ao raiar do dia, Roberta deu seu último suspiro. As jovens se abraçaram e se despediram.

Uma bênção ser pai de Jessica, que usa suas mãos com tanta habilidade. Em 2002, sonhando com a medicina, ao desenhar duas mãos cruzadas, parecia prever como a compaixão faria parte de sua profissão. Hoje é uma promissora cirurgiã.

TCBC Alfredo Guarischi