A importância das ‘cordas’ de intestinos de animais para cirurgias em humanos

O cirurgião Alfredo Guarischi fala sobre o categute, usado na medicina desde o século XIX.

Há milênios as feridas eram suturadas com fibras vegetais, crina de cavalo e fios de lã, como relatado no papiro de Edwin Smith, que aborda como era praticada a medicina e a cirurgia do trauma, no Egito, em 1600 a.C.

Coube ao mais famoso cirurgião indiano, Sushruta Samhita, autor do primeiro tratado de cirurgia, há mais de 500 a.C., descrever de forma clara as técnicas de sutura, recomendando antes de tudo a irrigação para limpeza das feridas e o uso de “grandes formigas negras (…) depois de cortadas suas cabeças (…) suas mandíbulas eram firmemente aplicadas às margens das feridas”. Considerado o Pai da Cirurgia Plástica, Sushruta buscou um modo de realizar suturas de forma mais prática e segura, descrevendo o uso de “cordas” feitas de intestino delgado de ovelhas. As mais grossas já eram usadas há décadas em instrumentos musicais e eram conhecidas por “kitgat” – ou categute, como é conhecido em português, que significa corda de violino de três cordas. Não há qualquer evidência de que o intestino de gatos – “cats” – tenha sido usado para produzi-las.

Na França, a importância do categute foi reconhecida em 1656, por Luís XIV, que permitiu a sua patente para fabricantes de instrumentos. Mas a disseminação de seu uso nas cirurgias ocorreu após 1868, quando Joseph Lister, famoso professor de cirurgia escocês, experimentou ligar uma grande artéria no pescoço de um bezerro. Trinta dias depois, ao sacrificar a cobaia, observou que o categute fora completamente absorvido, sendo substituído por um anel de tecido do próprio animal, ao contrário dos fios de algodão ou seda, que produzem muita reação nos tecidos, por serem permanentes.

Obtido a partir da parede muscular e fibrosa do intestino de animais, especialmente de ovelhas e bois, o categute é absorvido em pouco mais de uma semana. Posteriormente, ele foi modificado com a adição de sais de ácido crômico, para que sua absorção fosse mais lenta, em dois ou três meses, o que é importante para determinadas situações, principalmente em cirurgias dos aparelhos digestivo, genital e urinário.

As suturas constituem um enorme mercado mundial que anualmente ultrapassa US$ 1 bilhão, e o categute, cuja fabricação e esterilização não é simples, vem sendo substituído por fios sintéticos absorvíveis, estando seu uso proibido na Europa e no Japão, pelo receio de transmissão da doença da vaca louca, o que nunca foi efetivamente comprovado.

Essa realidade é lamentável, pois está em São José dos Campos uma das maiores fábricas mundiais desse fio, e o veterano categute, como muitas coisas clássicas da medicina, não deveria ser descartado.

Artigo publicado no jornal O Globo – editoria Sociedade, no dia 5/06/2018.