Curiosidades Históricas – O insólito caso Favez, pelo TCBC Rodrigo Felippe Ramos

Reconstituição feita pela polícia de Cuba mostra como pode ter sido o rostro de Favez. Foto: Cortesia/Julio César González Pagés

Em 1819, chegou a Cuba, mais precisamente ao povoado de Baracoa, um misterioso cirurgião europeu chamado Enrique Favez. Muito pouco se sabia sobre seu passado, apenas que nasceu em 1791 na Suíça e que tinha sido médico militar nas tropas de Napoleão Bonaparte. Segundo o próprio profissional, ele havia sido capturado na Espanha pelas tropas do general britânico Arthur Wellesley, o duque de Wellington. Terminada a guerra, Enrique se dirigiu à colônia francesa de Guadalupe, de onde posteriormente seguiu para Santiago de Cuba.

Dotado de vasto conhecimento médico, Enrique Favez logo prosperou, se tornando um renomado cirurgião. Casou-se com toda pompa e circunstância, sob as bênçãos da Igreja Católica, com uma bela moradora local chamada Juana de León. Tudo parecia ir bem na vida de Enrique, apesar de alguns episódios de bebedeira e brigas. Favez, apesar de atencioso com sua clientela, tinha fama de ter temperamento forte e às vezes violento. Foi então que, no dia 6 de fevereiro de 1824, ele foi intimado a comparecer perante o tribunal local.

Achando se tratar de algo relacionado a seu comportamento brigão, o médico foi surpreendido com a acusação de que ele não era quem aparentava ser. Furioso, protestou até receber uma ordem do juiz para ser submetido a um exame físico. Foi então que se viu obrigado a revelar seu segredo: Enrique era, na verdade, Enriqueta Favez.

Mesmo após a confissão, o exame físico foi realizado com o atestado oficial de que Favez “era dotada de todas as partes pudendas próprias do sexo feminino” e se tratava de uma “mulher real e perfeita”. A sentença: expulsa de todo o território hispano-americano. A decepção da personalidade (agora atendendo pelo seu nome real, Enriqueta) foi maior ao saber que quem fez a denúncia foi sua própria esposa.

Tudo aparentemente começou quando a empregada do casal viu o Dr. Favez deitado sobre a cama, embriagado e com a blusa desabotoada, com os seios à mostra. Com o surgimento dos rumores, Juana de Leon ficou com medo das consequências que poderiam recair sobre ela e, por isso, preferiu denunciar o marido antes que fosse acusada de ser cúmplice do artífice. Alegou que, quando se casou, era órfã e nada sabia, mantendo a farsa por temer ficar desamparada.

De acordo com o historiador Júlio César Gonzáles Pagés (autor do livro Por Andar Vestida de Homem), Enriqueta nasceu em uma família burguesa na cidade de Laussane na Suíça. Se casou com um soldado francês através de um arranjo matrimonial mediado por seu tio e serviu com o marido no exército napoleônico. Naquela época era muito comum as esposas acompanharem os maridos durante campanhas militares (no Brasil, eram comumente chamadas de “vivandeiras”).

Parece que, quando o marido foi morto, Enriqueta assumiu a identidade masculina e assentou praça como cirurgião, chegando a servir na Campanha Russa em 1812. Há ainda relatos de que se formou em Medicina na Universidade de Sorbonne em Paris após a guerra, antes de vir para o continente americano e ter seu diploma de cirurgião validado pelas autoridades coloniais.

Um dos fatos mais interessantes desta história é o de Enriqueta ter sido provavelmente a primeira médica e cirurgiã a pisar em solo americano. É creditado à americana Elizabeth Blackwell, nascida em 1821, o fato de ter sido a primeira médica graduada em Medicina. Nesta época Favez já era profissional de renome em Cuba.

Outro caso conhecido de uma mulher que se passou por homem para poder exercer a cirurgia foi o da irlandesa Margareth Ann Buckley, mais ou menos na mesma época. Adotando o nome de James Miranda Stuart Berry, Buckley serviu como cirurgião nas guerras napoleônicas, tal qual Favez, mas do lado britânico. Teve importante destaque no atendimento aos feridos durante a batalha de Waterloo, em 1815, e serviu em várias colônias do império britânico. Porém, só chegou à América Central em 1836, ou seja, bem depois de Favez.

Enriqueta foi expulsa de Cuba, passando a residir em Nova Orleans, adotando o nome de Margareth e trabalhando como monja de uma instituição de caridade. Ao que indica, Enriqueta desejava voltar a Cuba, conforme uma carta enviada para Juana de Leon. Juana nunca leu tal carta, pois havia morrido anos antes e Enriqueta veio a falecer em 1856 sem ter realizado o seu desejo de retornar à América.

Felizmente, nos dias atuais, as mulheres não precisam mais se passar por homens para exercerem a Medicina. Como visto, após alguns anos após a chegada de Favez à Cuba, as mulheres puderam ser aceitas nas faculdades de Medicina. Entretanto o preconceito ao exercício da profissão médica pelas mulheres não foi extinto com tal permissão. Isso pôde ser confirmado pela dificuldade que Maria Augusta Generoso Estrela, a primeira médica brasileira e formada em Medicina com louvor em Nova York em 1881, teve para validar seu diploma no Brasil.

Apesar de hoje as faculdades de Medicina do Brasil formarem mais mulheres que homens, ainda existe o triste legado do preconceito, especialmente na área da Cirurgia.