Dois cirurgiões tenores

Da mesma forma, no teatro cirúrgico, há distintos papeis para cirurgiões afinados.

ECBC Alfredo Guarischi

A voz do tenor é a mais aguda do sexo masculino e a principal no canto lírico. Origina-se do latim tenere, que significa ‘sustentar’, e, por essa razão, sustenta as notas, enquanto as outras vozes complementam o canto. Nas óperas clássicas, quando há uma disputa entre personagens, cabe ao tenor o papel de herói.

Semelhante aos tenores, os cirurgiões, no teatro cirúrgico, têm que usar bisturis afiados –agudos – e desempenhar o papel principal na luta contra a doença.

Tenho boas lembranças dos cirurgiões tenores Savino Gasparini Filho e Henry Hartmann.

O Professor Hartmann (1860-1952) foi um dos mais brilhantes cirurgiões franceses. Nomeado cirurgião-assistente em 1895 no recém-inaugurado Hospital Bichat, foi posteriormente seu vice-diretor e chefe do departamento de cirurgia. Em 1914 assumiu a Chefia de Cirurgia do Hôtel-Dieu, o mais antigo e famoso hospital de Paris, onde permaneceu como chefe por 20 anos, e, mesmo depois de sua aposentadoria, em 1930, continuou ativo e operando.

Seu Tratado de Anatomia e Clínica Cirúrgica, em nove volumes, descreve sua vasta e variada experiência no tratamento de pacientes com problemas biliares, gástricos, duodenais, genitais, urinários e de câncer de mama, sempre acompanhados de detalhadas descrições das cirurgias.

Com tantas contribuições, o que realmente fez o Professor Hartmann ficar famoso?

No 30º Congresso de Cirurgia da Associação Francesa de Cirurgia, em 1921, Hartmann falou sobre seu “Novo processo para a remoção de cânceres da parte terminal do cólon pélvico”, no qual descreveu como retirou radicalmente tumores localizados no reto, deixando o segmento do canal anal. Os dois pacientes se recuperaram sem complicações após a inédita operação. Posteriormente relatou uma série de 34 pacientes operados com três mortes (8%). Uma mortalidade bem menor que os 38% submetidos à cirurgia padrão descrita pelo inglês Ernest Miles (1869-1941), que considerava a retirada do ânus parte fundamental da cirurgia. Hoje a maioria dos cirurgiões concorda que a retirada do ânus nos tumores do reto só é necessária em condições específicas.

Savino (1919-1983), foi um cirurgião carioca formado pela UFRJ. Em 1951, viajou pela Europa por quatro meses, durante os quais frequentou diversos hospitais e lá conheceu Hartmann.

De volta ao Brasil, Savino foi aprovado no concorrido concurso público para o Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro (HSE), onde nasceu a residência médica e o centro de terapia intensiva no Brasil no último concurso público do INAMPS realizado no País. Na primeira reunião com a chefia, percebeu que as regras seriam diferentes do estabelecido. Não mais voltou. Também por concurso, ingressou no Hospital Municipal Souza Aguiar.

Posteriormente chefiou o Serviço de Cirurgia do Hospital Municipal Miguel Couto (HMMC) e o da Casa de Portugal, onde acolheu o excepcional Arno von Ristow, recém-chegado da Alemanha e aprovado em primeiro lugar no último concurso público do antigo INAMPS.

Ristow poderia escolher serviço para trabalhar, porém optou pela Casa de Portugal, onde, com o apoio de Savino, criou um dos serviços de maior volume de cirurgia vascular do Rio de Janeiro, apesar de todas as limitações da época. Dar espaço para brilhantes e jovens cirurgiões era da índole de Savino, que também escreveu seis teses científicas em busca de uma carreira acadêmica formal, indo da cirurgia de tórax, varizes, vias biliares, hemorragias a hipertensão porta.

Há diferentes tipos de tenores, que subirão ao palco conforme as habilidades técnicas exigidas por um determinado papel da ópera.

Da mesma forma, no teatro cirúrgico, há distintos papeis para cirurgiões afinados. Hartmann e Savino foram grandes tenores da cirurgia, cada um ao seu tempo e ao seu modo.