Números não cometem perjúrio

Os números sabem que representam pessoas de carne e osso, esperanças e sonhos; não querem ser politizados, judicializados ou contribuir para retóricas.

ECBC Alfredo Guarischi

Os algarismos hindu-arábicos representam um dos mais relevantes progressos na história da matemática. São identificados pela quantidade de ângulos. O zero foi o último a ser criado, e sua origem deveu-se à necessidade de posicionamento dos demais, e não da inexistência de algo. Hoje sabemos que sua presença ou ausência faz muita diferença.

Os números servem aos mais diversos interesses e por isso precisam ser defendidos, porque não conseguem falar por si mesmos e acabam sendo considerados os culpados ou agredidos por estarem servindo a alguém como dever de ofício. Uma grande injustiça, já quem servem a todos, sem qualquer discriminação.

Como médico reconheço a sua alegria ao contar nascimentos e sua tristeza em falar de pessoas que morrem, a missão mais dolorosa que são obrigados a realizar, todos os dias, em municípios, estados e países, com populações tão desiguais. Isso exige muita cautela pelos desdobramentos epidemiológicos que desencadeiam e porque mortes ocorrem por diversas causas, mesmo durante pandemias.

Volte e meia são considerados exagerados, falsos, omissos e até de estarem se escondendo. Nunca desejaram privilegiar ou denegrir ninguém, mas apenas expressar fatos, porém estão sendo manipulados pelos mais diversos motivos.

Têm sido apresentados com os mais diversos vieses em tabelas multicoloridas e confusas, gráficos e análises contaminados. Ouvidos experientes, de gente sem ideias preconcebidas, percebem o sofrimento dos números naturais e os fracionados, assim como dos irracionais, números decimais infinitos, que não seguem um padrão, estando no olho do furacão. Até o número pi, a constante matemática mais antiga, vê com temeridade quando apenas um somatório contínuo – verdadeiro empilhamento – é apresentado de forma não contextualizada.

Os milenares números romanos só são entendidos se as regras rígidas para o uso de suas sete letras forem respeitadas. Sem isso ninguém sabe o que significam.

Na atual pandemia, os modernos números arábicos estão sendo utilizados desrespeitando algumas regras. Ao noticiaram que os óbitos no Brasil ultrapassaram os ocorridos em diversos países, uma verdade, cometem um deslize. Para a comparação entre bairros, cidades, estados ou países, com populações diferentes, o correto é apresentar a taxas por cem mil ou por milhão de habitantes. Se tivessem feito isso desde o início, algumas alquimias não prosperariam. Os números jamais se opuseram a fazerem parte de taxas ou coeficientes, e, talvez pela nossa amizade, já me disseram que fui um dos poucos a defendê-los nessa questão sensível.

Outra constatação são os gráficos em escala aritmética com os somatórios dos óbitos. Se os mesmos dados fossem apresentados na escala logarítmica, nada seria omitido, e a real proporção do crescimento da tragédia ficaria mais clara. Os números sabem que representam pessoas de carne e osso, esperanças e sonhos; não querem ser politizados, judicializados ou contribuir para retóricas. Nossos matemáticos, estatísticos e epidemiologistas precisam ter cautela com a eles, que são somente seus porta-vozes. Dez por cento de mortalidade não é melhor ou pior que noventa por cento de cura.

Números não cometem perjúrio.