Natal CBC 2020 – Aos 88 anos, a cirurgiã Angelita Habr-Gama conta sua experiência com a COVID-19

Além de quebrar paradigmas na vida pessoal e profissional, sendo a primeira mulher residente de cirurgia do Hospital das Clínicas da USP, a coloproctologista  comemora a vitória contra a doença

A série de homenagens do Colégio Brasileiro de Cirurgiões (CBC) aos médicos cirurgiões  curados após serem infectados pelo novo coronavírus traz uma personagem especial: a cirurgiã Angelita Habr-Gama, 88 anos. Especialista em Gastroenterologia e Coloproctologia, ela dedica-se durante toda sua vida à Medicina, ao ensino, pesquisa e extensão. Considerada referência mundial em sua especialidade, a médica enfrentou uma das maiores batalhas da sua vida: a COVID-19. Ela acredita que foi infectada durante um congresso médico internacional, em Jerusalém, no final de fevereiro. Apesar dos sintomas leves no início de março, a doença evoluiu rapidamente, Angelita teve que ser intubada e ficou internada durante 52 dias na UTI do Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo. O marido, Joaquim Gama, também cirurgião, foi infectado, mas curou-se sem ter tido sintomas.

Angelita pensou que poderia morrer, um filme da sua vida passou pela mente em poucos segundos e ela se deu conta de que viveu bastante, chegou a uma idade boa, com muito prazer e produtividade. A morte seria o curso natural, mas se desse para esperar um pouco mais, seria melhor. “Eu não queria morrer. Acho a vida muito gostosa. Quando acordei quase dois meses depois e vi todos à minha volta, senti imensa alegria”, ressalta. Após viver uma experiência tão profunda, a cirurgiã afirma que todas as pessoas poderiam  passar pelo privilégio de viver uma situação de risco para valorizar ainda mais uma vida sem riscos e realizadora.

Para a mulher que enfrentou muitos nãos até conseguir chegar ao topo de sua carreira, inclusive dos pais e de instituições que aceitavam apenas homens para especialização em cirurgia, o novo coronavírus foi mais uma significativa vitória dentre tantas outras. “Acho que saí mais forte e alegre da COVID-19. Voltei ao meu cotidiano extremamente ativa. Trabalho é a minha condição de vida”, declara a cirurgiã, que retornou às suas atividades no consultório e a realizar cirurgias de alta complexidade no trato intestinal.

Carreira de sucesso e extenso currículo

Angelita Habr-Gama nasceu na Ilha do Marajó, no Pará, e se mudou com a família para a capital paulista com 7 anos de idade. Com 19, entrou na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), no ano de 1952. E foi na USP que ela alcançou o nível mais alto da carreira na docência, como professora titular de cirurgia. A médica foi a primeira mulher residente de cirurgia do Hospital das Clínicas (HC), onde, pioneira na universidade brasileira, criou a disciplina de Coloproctologia e foi a primeira a chefiar o departamento de  Gastroenterologia da FMUSP.

A cirurgiã publicou mais de 246 artigos científicos em revistas indexadas no PubMed, fundou a Associação Brasileira de Prevenção do Câncer de Intestino (ABRAPRECI) e é sua atual presidente, foi nomeada coordenadora no Brasil do Programa de Prevenção do Câncer Colorretal pela Organização Mundial de Gastroenterologia (OMGE), exerceu a presidência da Sociedade Brasileira e da Sociedade Latinoamericana de Coloproctologia e do Colégio Brasileiro de Cirurgia Digestiva. Foi também vice-presidente nacional do CBC. A especialista organizou e presidiu o Fórum Internacional de Câncer do Reto (FICARE), em novembro de 2007, em São Paulo, com a presença dos mais notáveis especialistas de todo o mundo para debater o diagnóstico e tratamento do câncer colorretal. O evento é realizado bienalmente desde então, sob sua presidência, fazendo parte de forma destacada da agenda mundial da Coloproctologia.

Angelita é membro honorária da centenária sociedade científica American Surgical Association e a primeira mulher a receber este título, do American College of Surgeons, European Surgical Association,  da Italian Surgical Association,  da American Society of Colon and Rectal Surgeons, do Royal College of Surgeons of England, a mais antiga sociedade científica de cirurgia, fundada em 1540, do Colégio Brasileiro de Cirurgiões, da American Society for Radiation Oncology (ASTRO), da European Society of Coloproctology e da European Society of Radiation Oncology. A médica também é membro honorária de várias sociedades de Coloproctologia do Brasil, Chile, Paraguai e Equador, da Associação Argentina de Cirurgia, da Academia Nacional de Medicina da Argentina e da Associação Latinoamericana de Coloproctologia.

A cirurgiã ainda é reconhecida por alterar o paradigma mundial adotado durante quase todo o século XX quanto ao método padronizado para o tratamento do câncer do reto baixo em sua publicação seminal de 2004. Antes, o método utilizado era ressecção cirúrgica radical seguida de quimioradioterapia, atingindo índice médio de curabilidade, de acordo com o estadiamento da doença, variando entre 50 a 95%. Com sua proposta, baseada em pesquisa clínica feita por ela e sua equipe, iniciada em 1981, no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da USP, firmou-se como atual paradigma difundido amplamente que o tratamento do câncer do reto baixo deve ser inicialmente conduzido com quimioradioterapia, postergando-se a ressecção cirúrgica. Esta deve ser realizada apenas no caso de não se obter o desaparecimento completo do câncer, ou na hipótese de sua recidiva. Com esta complementação operatória quando necessária, a cura do paciente não é prejudicada e a extensão da ressecção é reduzida, com mais índice de preservação do aparelho esfincteriano ano-retal. Os índices de curabilidade com este novo paradigma, atingem, mesmo sem o tratamento cirúrgico, índices semelhantes de curabilidade (entre 50 e 95% de acordo com o estadiamento da doença).

A publicação de Angelita sobre os resultados da aplicação do método chamado de “Watch and Wait”, em 2004, na respeitada revista científica Annals of Surgery, foi elencada entre as 100 contribuições científicas que provocaram maior impacto no conhecimento científico na área cirúrgica dentre 286 mil publicações dos últimos 40 anos. Essa também foi a única pesquisa proposta, desenvolvida e conduzida por uma cientista latino-americana citada entre as 100 mais importantes.